São Paulo, domingo, 18 de setembro de 1994
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A coreografia do vírus da gripe

CLÁUDIO CSILLAG
EDITOR-ASSISTENTE DE CIÊNCIA

Pesquisar o vírus da gripe –responsável, direta ou indiretamente, por mais mortes anuais do que a Aids– não dá tanto dinheiro quanto investigar o HIV.
Mesmo assim, um grupo de cientistas dos EUA conseguiu revelar o mecanismo usado pelo vírus para infectar células num grau de detalhe não atingido pelos colegas que estudam a Aids. E, pelo que descobriram, o vírus da gripe pode ser considerado mais ardiloso que o HIV.
"Constatamos que a molécula do vírus que se liga à membrana celular muda de forma quando a célula tenta se defender", disse Wiley à Folha.
"É uma verdadeira contorção molecular, que causa o rompimento da membrana celular e a infecção plena."
A mudança de forma é específica do vírus da gripe, mas Wiley acredita que metade de todos os vírus usam algum tipo de contorção molecular para penetrar a célula.
"Como é o caso com o próprio HIV", diz.
A descoberta é importante porque traz a esperança de obter uma vacina geral contra todos os tipos de vírus da gripe. Como o HIV, ele sofre muitas mutações, dificultando a obtenção de uma vacina permanente.
"A contorção é sempre a mesma, não importa se o vírus sofreu mutações ou não. Se a gente conseguir uma droga que evite que ela ocorra, a infecção não se completará", diz Wiley, que descreve em detalhes os movimentos da molécula viral na revista científica "Nature" de 1º de setembro. Essa abordagem pode, inclusive, ser testada contra o vírus da Aids.
Outra maneira é fazer a contorção molecular ocorrer antes de o vírus estar preparado para invadir a célula.
"A mudança de forma da molécula do vírus só acontece uma vez. Se ocorrer antes da hora da invasão, o vírus vai ter desperdiçado seu único tiro, e o sistema imunológico acaba matando-o."
300 mil brasileiros
Apesar de causar mais mortes do que a Aids, é provável que uma vacina permanente contra o vírus da gripe e todos seus mutantes chame menos atenção do que uma vacina contra o HIV.
Só o desconhecimento do perigo do vírus explica o fato. A gripe é uma das doenças que mais matou na história do homem.
Suas epidemias, que ainda ocorrem todo o ano, já assustaram mais do que a da Aids.
A mais famosa –e considerada uma pandemia– é a que assolou o mundo em 1918-1919, quando pelo menos 20 milhões de pessoas morreram (alguns especialistas dizem que o número de vítimas pode ter sido o dobro). No Brasil, 300 mil pessoas morreram.
As epidemias, quase sempre no inverno, ocorrem quando o vírus sofre uma mutação que o torna mais virulento e irreconhecível pelos sistemas imunológicos das pessoas infectadas.
Em 1918, por exemplo, morreram proporcionalmente mais jovens do que velhos. Isso sugere que as pessoas mais velhas já haviam tido contato com uma forma semelhante do vírus.
As mutações que causam epidemias ocorrem justamente na molécula estudada por Wiley (e por ele descrita, pela primeira vez, em 1981).
A molécula chama-se hemaglutinina, ou HA. É uma proteína que fica espetada na capa do vírus.
"A HA sofre cerca de 15 mutações a cada dois anos", diz Wiley. "Uma dessas mutações pode produzir uma variante do vírus que causa uma nova epidemia."
Toda a interação inicial entre vírus e célula do paciente ocorre através da HA. É ela que o sistema imune reconhece e procura atacar, ela que se liga à célula e ela que se contorce para romper a membrana e deixar o conteúdo do vírus invadir a célula.
Após uma mutação, com a HA de cara nova, o vírus consegue chegar com relativa facilidade à célula-alvo, sem ser muito incomodado pelo sistema imune.
Para efetuar a infecção, a HA se liga à superfície celular. A célula, acionando suas defesas, envia uma espécie de cápsula que faz o papel de boca e estômago ao mesmo tempo. A cápsula engole o vírus e tenta digeri-lo com ácidos (veja figura abaixo).
Aí entra a ardileza do vírus. Como um lutador de judô, ele se aproveita da força do oponente para vencer a luta.
O aumento da acidez no interior da cápsula provoca a mudança de forma na HA.
"É como se a proteína fosse uma mola comprimida, e a acidez liberasse a mola", disse Wiley. "É um processo instantâneo."
A partir daí, a invasão da célula e a tomada de poder sobre a maquinaria celular se torna inevitável.
Com a mudança de forma da HA, o envoltório do vírus e a membrana da cápsula se fundem.
O conteúdo do vírus, RNA –que faz as vezes de DNA, o material que constitui genes em seres mais evoluídos– é liberado no interior da célula.
O RNA viral vai para o núcleo da célula infectada, onde fica o RNA celular (onde também ficam os genes –DNA– da célula, mas o vírus não precisa deles).
A molécula de RNA é uma engrenagem na produção de proteínas –que são as moléculas que dão forma aos seres vivos e viabilizam suas reações químicas.
O RNA lê as informações contidas nos genes, leva-as para fora do núcleo da célula e usa-as para montar as proteínas.
Dentro do núcleo, o RNA do vírus produz uma proteína viral que atua como tesoura (veja figura). A tesoura corta um pedaço do RNA da célula que é especializado em acionar a produção de proteínas –algo como um RNA-maquinista.
Em seguida, o RNA do vírus sequestra esse RNA-maquinista e leva-o para fora do núcleo.
Lá, o RNA-maquinista é forçado a iniciar a produção de proteínas. Mas como é o RNA do vírus que está no comando, as proteínas produzidas são as do vírus.
Ao mesmo tempo, pedaços de RNA do vírus são liberados. Estes se juntam às proteínas recém-produzidas e formam novos vírus. A célula infectada se torna uma fábrica de vírus, prontos para infectar novas células.
Todo esse processo poderia ser evitado com uma vacina que funcionasse contra todas as formas mutantes do vírus, atuais e futuras. Com a identificação da estrutura da HA e da maneira como ela rompe a membrana celular, ela deixou de ser ficção, embora ainda esteja longe de ser desenvolvida.
"É uma trabalho para muitos anos ainda", diz Wiley.

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