São Paulo, domingo, 18 de setembro de 1994
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Barba e bigode

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

Entre as simplificações sussuradas no velório de Lula –cujo funeral as pesquisas, até aqui, dão como certo–, as mais lamuriantes dirigem-se ao "apoio da mídia" ao candidato concorrente e ao uso "eleitoreiro" do plano por ele arquitetado durante sua passagem pela Fazenda.
Luiz Inácio Lula da Silva, esta alma pura do povo, estaria, não se sabe se por direito divino ou por inevitável desdobramento da luta de classes (o que dá no mesmo), ungido para assumir o poder. Contra esse fato inelutável e cristalino teimariam em erguer-se, desandando o fado, as forças demoníacas das elites.
Tal alucinação messiânica e religiosa não é estranha à cultura política do PT –ao contrário, nela comunga com o fatalismo marxista vulgar. Lembre-se que a aliança com esta moderna instituição intitulada Igreja Católica "progressista" foi importante ao ponto de banir do programa eleitoral do partido (suposto paladino das mulheres pobres e afro-brasileiras em geral) a luta pela legalização do aborto.
Mais odioso, porém, é que o "anti-Lula" (a conotação messiânica da expressão salta aos olhos) não se encaixa no perfil luciferiano esperado pelos beatos. Trata-se, então, de fazê-lo demônio. Para isso, tenta-se transformar Fernando Henrique na segunda encarnação do coisa-ruim de plantão, Fernando Collor. Esforço que chega ao requinte mistificador de uni-los pelo nome Fernando –que, felizmente para os assim batizados, ainda não emplacou como sinônimo do tinhoso.
Fariam melhor o PT e os petistas se procurassem imprimir um pouco mais de racionalidade a suas análises. Lula começou a corrida eleitoral com índices de intenção de voto iguais aos que Fernando Henrique ostenta agora. Por que razão deixou escorrer pelo ralo tamanho cacife? Porque o eleitorado brasileiro é preconceituoso e não gosta de barbas e bigodes? Porque o eleitorado brasileiro sonha com um scholar na Presidência? Porque o eleitorado brasileiro só vota de acordo com as simpatias da Globo?
Come on, baby. O PT está na situação em que está por culpa de seus grosseiros erros políticos. O cálculo do partido para as eleições errou na mosca: imaginou-se que o país seria o mesmo de cinco anos atrás e que teríamos, no máximo, uma reedição do duelo de 89, com um candidato conservador na polarização, cuja desmistificação seria uma barbada.
O PT viu crescer sob suas barbas a articulação em torno de Fernando Henrique, intelectual e político zilhões de furos acima de Collor, presenciou o encaminhamento do Plano Real e... nada fez. Menosprezou brutalmente a demanda popular pela estabilização, centrou fogo no problema do emprego e esqueceu o da inflação, enrolou-se na solução do caso Bisol, titubeou entre um discurso popular e uma fachada respeitável, de gravata e pêlos aparados, e acabou vestindo uma carranca rancorosa, negativista e baixo-astral, sem humor e sem otimismo.
A continuar assim, não há dúvida: Fernando Henrique fará, já no dia 3 de outubro, barba e bigode no rouco messias de Garanhuns.

Ilustração:

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