São Paulo, segunda-feira, 19 de setembro de 1994
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Nuno Ramos quer cegar com jorro de luz

Obra do artista tenta unir cegueira e fenômenos cósmicos

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

O trabalho que Nuno Ramos, 34, está preparando para a 22ª Bienal de São Paulo, a ser inaugurada em 12 de outubro, exigiu que o artista entrevistasse cegos e estudasse a composição de meteoritos.
A força dessa instalação que vai ocupar uma sala de 140 metros quadrados está em algum ponto de interseção improvável entre esses dois universos aparentemente díspares: a cegueira e os fenômenos cósmicos.
"Ainda não sei exatamente onde se junta esse lado celeste e o lado da cegueira. O título 'Mácula' tem o sentido de mancha solar e define, ao mesmo tempo, a região da retina onde você vê melhor, com mais definição", diz.
"Fiz entrevistas com cinco ou seis cegos da Unidade de Reabilitação para Deficientes Visuais. Eles falavam muito da sensação da luz. Eu estava com a idéia da cegueira como excesso de luz, essa coisa da foto velada", diz.
Os paradoxos, tanto do sentido como da matéria (quando funde breu e sal, por exemplo), fazem com que as metáforas nunca sejam óbvias nos trabalhos de Ramos. Há sempre um acúmulo, um excesso, um sentido superposto que perturba os sentidos prévios que o espectador acreditava ter alcançado.
"Mácula" é formada por sete grandes peças –meteoritos– de parafina, sal e breu, distribuídas dentro de uma sala cujas paredes estão tomadas por um texto do artista escrito em braile agigantado (cada ponto, em gesso, tem oito centímetros de diâmetro).
Além dessas peças, dois tubos de órgão fazem sons (fá, si) que são transmitidos por um radioamador e provocam a iluminação de 12 lâmpadas de hélio e nitrogênio –os gases do sol.
"Com a luz, você não sabe se o texto em braile está para fora ou para dentro da parede. O breu também parece uma espécie de lente. É uma relação de preto e branco onde o preto parece ter mais luz, parece que ali dentro há uma coisa sendo guardada, velada".
Ramos pensa em dar nomes de meteoritos célebres a essas peças (Ahnighito, Hubawest, Beta Taurid etc.), impressionado pelo efeito dessa luz devastadora. O artista conta, empolgado, como, em 1908, na Sibéria, a queda de um meteorito teve o efeito semelhante ao de uma bomba atômica, permitindo que as pessoas pudessem ler jornal em Londres à noite, cinco horas depois do choque.
"Um meteorito desse tamanho destruiria São Paulo", diz, apontando para uma de suas peças.
A obsessão de Ramos pelo excesso que cega, por um jorro de luz que ofusca, está relacionada a uma preocupação –presente nos trabalhos anteriores– com as relações entre linguagem e matéria.
"No meu trabalho, a linguagem ganha matéria –e nesse momento ela deixa de ser linguagem. 'Mácula' é uma tentativa de entrelaçar linguagens. Tenho uma ligação muito forte com a matéria e, ao mesmo tempo, uma tendência à sublimação da matéria, com materiais frágeis, como o sal. O paradoxo da matéria virando linguagem e da linguagem virando matéria é muito rico para mim", diz.
O catálogo que está fazendo para a Bienal, por exemplo, contém fotos do sol tiradas de dentro de nuvens de poeira ("passava com um carro por canaviais e batia a foto do sol dentro da nuvem de terra levantada pelo carro; é como uma catarata", diz), um conto e fragmentos escritos pelo próprio artista em torno do tema da cegueira.
O artista já havia publicado no ano passado um livro, pela editora 34: "Cujo". O conto que incluiu agora no catálogo ("Bled El Fateh", que quer dizer "Terra da Sede" em árabe) é mais narrativo que os fragmentos.
É a história de um grupo que avança para dentro do deserto, seguindo as indicações de um explorador francês, à procura de dunas de vidro. "A idéia é você encontrar uma coisa que não pode ver".
A cegueira pode ser, de certo ângulo, a principal força de um artista. No caso de Nuno Ramos, o excesso de elementos superpostos sempre impediu uma visão completa durante o processo. "Não vejo os trabalhos. Já não via os quadros, que eu fazia no chão. E essas instalações, eu só posso vê-las quando estiverem montadas", diz.
Mais que isso, o artista faz referência ao mito de Orfeu para falar de arte. "Você não pode olhar para trás nesse negócio de arte", diz. Ramos não comete esse erro. Sabe que é somente olhando para a frente, para o que não conhece –e não para o que já fez ou conquistou–, à procura do que não pode ver, como as dunas de vidro, que tem chances de chegar a uma arte que seja mais verdadeira.
"No começo estava muito preso aos '111' (instalação que realizou em 93 a partir do massacre do Carandiru). A melhor coisa foi me livrar daquele vocabulário. Nos '111' já havia uma semântica muito grande. Agora, o trabalho é mais dominado, mais limpo e menos violento. Tinha vontade de que ficasse menos pastoso. Fiz textos em vidro. Mas foi o braile que me ajudou muito", diz.

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