São Paulo, quarta-feira, 21 de setembro de 1994
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Máximas confrontam visões dos moralistas

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Há pouco tempo, a editora Imago publicou nova tradução das "Máximas e Reflexões" do duque de La Rochefoucauld (1613-1680). Surgem agora, pela editora Paraula, as "Reflexões e Máximas" do marquês de Vauvenargues (1715- 1747).
A comparação é inevitável. La Rochefoucauld e Vauvenargues pertencem à linhagem dos chamados "moralistas franceses", na qual se incluem La Bruyère, Chamfort, Rivarol. Moralistas não no sentido de puritanos, mas de observadores da fraqueza humana, de analistas do comportamento, antes do aparecimento da moderna ciência psicológica.
Quase um século separa Vauvenargues de La Rochefoucauld. Na época de Vauvenargues, os rigores do classicismo sob o reinado absoluto de Luís 14 cediam ao espírito mais tolerante, iluminista e urbano dos filósofos setecentistas. A experiência política inglesa, as investigações de Newton e de Locke, o aprendizado liberal ganhavam o ambiente filosófico na França, especialmente graças a Voltaire, de quem Vauvenargues foi amigo.
Para quem se choca ainda com o extremo pessimismo, a amargura cruel das máximas de La Rochefoucauld, o aparecimento deste livro de Vauvenargues talvez surja como um amável antídoto.
Poderíamos, de fato, conceber Vauvenargues como uma resposta, quase cem anos depois, às violências de La Rochefoucauld. O problema é que Vauvenargues não é tão bom quanto seu antecessor.
La Rochefoucauld nos surpreende a cada frase. Sua desconfiança com relação a tudo que possa haver de bom na alma humana aproxima-o dos grandes "moralistas" modernos: Nietzsche, Freud, Sartre. Basta abrir o livro de La Rochefoucauld para sofrer um colapso na auto-estima.
"Somos muitas vezes firmes por fraqueza e audaciosos por timidez". A clemência, "de que se quer fazer virtude, pratica-se às vezes por vaidade, às vezes por preguiça, frequentemente por temor e quase sempre pelas três coisas juntas". "Salvo sua enorme vaidade, os heróis são do mesmo feitio que os outros homens". O desprezo da morte nada mais é senão "o temor de encará-la". "O interesse fala toda espécie de língua e faz toda espécie de papel, mesmo o do desinteressado".
Cito estas frases folheando apenas três páginas de La Rochefoucauld. As máximas de Vauvenargues, opondo-se a esta visão desencantada da alma humana, são menos surpreendentes e naturalmente perdem em agudeza.
Não poderia ser de outro modo. O pessimista parece sempre mais verdadeiro, o radical parece sempre mais interessante (e é) do que o otimista moderado.
Vauvenargues procura justificar aquilo que La Rochefoucauld condenava: amor-próprio, vaidade, esperanças de glória, paixões, impulsos do coração. Tudo o que aniquilava, por assim dizer, qualquer pretensão humana à virtude é de certa forma recuperado por Vauvenargues.
Ele distingue, por exemplo, o amor-próprio, variante do orgulho, de outra coisa muito natural e aceitável, a saber, o amor a si mesmo. As paixões não são, para Vauvenargues, apenas um móvel secreto e odioso de nossas atitudes, mas algo de criativo e benfazejo: "Os grandes pensamentos vêm do coração". "Talvez devamos às paixões as maiores vantagens do espírito". "As paixões ensinaram aos homens a razão".
Nesse sentido, Vauvenargues é mais otimista (embora suas máximas fossem citadas pelo pessimista-mor dos filósofos, Schopenhauer). O que importa registrar, do ponto de vista histórico, é que Vauvenargues procurou dar, digamos assim, um título de cidadania às paixões humanas; ou, talvez, enobrecê-las.
Era a época de Voltaire. Tratava-se de encarar com menos severidade os impulsos humanos. Tratava-se de glorificar o indivíduo, ainda que suas fraquezas fossem inegáveis. A tolerância estava mais na moda do que a reprovação. Procurar a glória, por exemplo, não era para Vauvenargues um ato tão condenável quanto o era para La Rochefoucauld.
Quase tudo, em Vauvenargues, é esforço de conciliação. Critica os filósofos (leia-se La Rochefoucauld) que, tendo imaginado "uma virtude incompatível com a natureza do homem", declaram "que não existe virtude". Pergunta: "Será contrário à razão ou à justiça amar a si mesmo". Num arroubo radical, afirma: "Não há século ou povo que não tenha instaurado virtudes e vícios imaginários".
Sem dúvida, esse esforço de tolerância não faz de Vauvenargues um "bonzinho", contra a malevolência cósmica de La Rochefoucauld. Se fosse assim, Vauvenargues não seria um "moralista".
O desencanto, ou melhor, a confusão frequente que se faz entre verdade e desencanto, está presente em suas reflexões: "A desculpa habitual dos que causam a desgraça dos outros é que querem o seu bem". "A natureza não fez nada igual. Sua lei soberana é a subordinação e a dependência". "O tolo é como o povo, que se julga rico com pouco". "Todos os homens são clarividentes em se tratando dos seus interesses".
A diferença entre La Rochefoucauld e Vauvenargues, em máximas como as citadas acima, está menos na atitude intelectual do que no tom, ou melhor, no objetivo com que foram escritas. O que um e outro autor têm de verdadeiro, sem dúvida, é equivalente. Só que Vauvenargues dirigia-se a uma época em que aceitar a pessoa humana, tal como ela é, constituía um objetivo político e ideológico mais presente do que negar, a todo custo, a nobreza das paixões (e das falhas) humanas, como no tempo de La Rochefoucauld.
O papel ideológico de um e de outro autor importa menos, contudo, do que o seu respectivo valor literário e sua pertinência nos dias de hoje. Vauvenargues, o conciliador, o amável, é menos interessante atualmente que o rebarbativo e suspeitoso La Rochefoucauld.
Por quê? Exatamente porque La Rochefoucauld põe em dúvida, "modernamente", as convicções burguesas de elogio ao indivíduo, de elogio às inclinações pessoais, de complacência com o luxo, com o prazer, com a idéia de desigualdade de condições sociais, que motivavam o voltairiano Vauvenargues.
Mas aos tolerantes cabe sempre a última palavra, e Vauvenargues tem razão quando diz: "O homem talvez esteja a ponto de reerguer-se e fazer com que lhe sejam restituídas todas as suas virtudes, pois a filosofia possui suas modas como o vestuário, a música, a arquitetura etc."
Vauvenargues morreu aos 32 anos. Seu tradutor, nesta edição brasileira, morreu aos 25. O trabalho merece elogios. Há, entretanto, erros ou soluções discutíveis na tradução das máximas de números 5, 81, 105 e 110.

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