São Paulo, domingo, 25 de setembro de 1994
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Plano Real e o ciclo econômico-eleitoral

EDUARDO GIANNETTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Economia e política sempre estiveram ligadas. O próprio nome de batismo da ciência econômica –Economia Política– dizia isso. Mas, com a expansão do Estado no pós-guerra, os vínculos entre política e macroeconomia tornaram-se ainda mais fortes.
O que houve, na prática, foi a crescente politização das decisões econômicas. Uma amostra disso é a hipótese do ciclo econômico-eleitoral, formulada pelo economista norte-americano William Nordhaus nos anos 70.
Em qualquer democracia, o processo eleitoral é em larga medida determinado pelas condições econômicas vigentes. Buscando maximizar votos e garantir a sua reeleição, os políticos no poder e seus aliados esforçam-se por criar um ambiente favorável, estimulando fortemente a economia logo antes das eleições. Os eleitores são levados a formar crenças ilusórias sobre o estado real da economia e os governantes colhem, nas urnas, o resultado almejado.
O exemplo clássico desse fenômeno no pós-guerra –e que serviu de inspiração direta para Nordhaus– foi a eleição norte-americana de 1972. A apenas algumas semanas do pleito, o presidente Nixon (candidato à reeleição) elevou o valor dos benefícios da seguridade social em cerca de 20% e indexou-os à inflação. A expansão monetária no ano pré-eleitoral foi o dobro da verificada no ano anterior e nos três anos seguintes. Não foi à toa que Nixon, em outro contexto, declararia: "Agora somos todos keynesianos".
A lógica subjacente ao ciclo econômico-eleitoral é simples e poderosa. os governantes são astutos, o eleitor é míope. O que está perto e é tangível pesa mais, na formação de crenças, do que o remoto e apenas provável.
Não há nada mais fácil na vida do que tomar o temporário pelo permanente –do que supor durável o que é fugaz. O benefício é à vista –quem ousaria ser contra? Mas o custo, exorbitante, só surgirá mais tarde e poucos compreenderão sua origem.
O escopo para práticas desse tipo é diretamente proporcional ao grau de intervencionismo estatal. Quanto mais um governo tem a oferecer –em termos de gastos, favores, regulamentos, concessões, etc.–, mais vulnerável será a sociedade aos "paraísos artificiais" criados por governantes buscando permanecer no poder. O "timing" é tudo.
A experiência brasileira nesse campo sempre foi riquíssima. Da liberação do crédito agrícola à concessão de licenças para novos táxis e emissoras de rádio e TV, tudo passa pelo crivo das ambições eleitorais dos donos do poder.
O início, em final de mandato, de grandes projetos e obras públicas é outro exemplo –há 19 hidrelétricas com obras paralisadas no Brasil. Só por esse ralo escorrem hoje mais de US$ 400 milhões anuais.
Tudo isso, no entanto, é apenas o varejo do ciclo econômico-eleitoral na política brasileira. Ao atacado (macro) pertencem não só o malfadado "estelionato eleitoral" do Plano Cruzado como, o que é menos sabido, o estouro das metas monetárias do BC no bojo das eleições de 90 –um fato que, além de lançar a inflação às alturas, gerou um rombo financeiro dos Estados junto à União que vem sendo até hoje objeto de obscuras rolagens e renegociações.
E o Plano Real? Até que ponto seria correto interpretá-lo como o mais recente e espetacular episódio de manipulação pré-eleitoral em nossa macroeconomia política? Estaremos às voltas, novamente, com um "paraíso artificial" –embriagados com o sucesso inicial do plano e iludidos pelo nosso próprio desejo de que ele funcione e elimine de vez a praga inflacionária?
É difícil imaginar uma pergunta que suscite tanto fogo e cegueira partidária hoje em dia. Para uns, o engodo trágico do Cruzado está prestes a se repetir, agora como farsa, na astúcia envernizada do Plano Real. Há um tarifaço (ou coisa parecida) sendo urdido para o "day after" da eleição.
Para outros, a mera suspeita de que o Plano Real cheira a expediente pré-eleitoral seria algo ofensivo e impatriótico. E mesmo que fosse, acrescentam, haveria outra opção?
Diante de posições tão conflitantes –e defendidas, curiosamente, por gente que até ontem andava de braços dados em política–, no que acreditar? A resposta sensata, creio, pelo menos para quem deseja manter um módico de objetividade diante dos fatos, é que a verdade não está nem lá, nem cá. O que existe, a meu ver, é uma boa dose de razão –e outra ainda maior de ilusão– em ambas as posições.
O "timing" eleitoral do Plano Real salta aos olhos. Se alguém tivesse calculado friamente a coisa, não teria feito melhor. A uma semana das eleições, a inflação, que já vinha baixa, caiu para menos de 1% ao mês.
A orgia de remarcações na despedida da URV –criando uma gordura para ser queimada nos meses seguintes– acabou sendo uma benção disfarçada. Mas o lance responsável pelo sucesso pré-eleitoral do plano foi o golpe de mestre aplicado na indexação.
O grande feito do Plano Real, até o momento, foi a desinercialização da inflação. O mais nótavel é que isso foi conseguido sem congelamento ou violação de contratos, como de outras vezes, e sem que os fundamentos da estabilização duradoura –ajuste fiscal e liberalização– tivessem sido conquistados. O segredo do Plano Real reside numa peça notável de engenharia financeira.
Para quebrar a espinha da indexação, adotou-se o sábio preceito oriental –"se você não pode derrotar o seu inimigo, então junte-se a ele". O Plano Real venceu a indexação –pelo menos temporariamente– juntando-se a ela e usando a sua própria força para destruí-la.
É de tirar o chapéu. Só mesmo economistas brasileiros teriam tido uma idéia tão engenhosa, até porque só no Brasil se criou uma indexação tão sofisticada e diabólica...
Apontar para o "timing" eleitoral do Plano Real e a superficialidade das medidas já tomadas não implica, contudo, reduzí-lo à condição de mero "paraíso artificial", engendrado para virar as eleições e nada mais.
Embora frágil, o Plano Real é um hábil começo –uma gigantesca promessa. Se FHC for eleito, como tudo parece indicar, os primeiros meses de seu mandato mostrarão se a promessa será traída ou honrada.
"A anatomia do homem", dizia Marx, "é a chave para anatomia do macaco". O mesmo vale, "mutatis mutandis", para o Plano Real. O que for feito dele no futuro, após as eleições, será a chave para o que foi feito na fase pré-eleitoral. Se o Plano Real pertence –ou não– à família espúria do Cruzado, só o tempo dirá.

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