São Paulo, domingo, 25 de setembro de 1994 |
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As mil faces da guerra em Sarajevo
JOSÉ ARBEX JR.
Como num romance, os personagens são identificados por seus nomes, hábitos, crenças, famílias, angústias e esperanças. A guerra deixa de ser algo anônimo, um jogo frio de interesses em choque. Ela adquire face –ou melhor, mil faces. A guerra se torna humana. Este é o ponto forte do livro, o que o torna distinto da maioria de outros sobre o mesmo tema. O detalhe, aqui, não é um simples recurso estilístico. É a razão de ser da obra. É sua substância. Há momentos que emocionam. Por exemplo, quando narra seu encontro com a menina Aida, gravemente ferida num hospital de Bihac (de maioria muçulmana): "Me senti nu, despido de toda a humanidade, um cúmplice de quem destruiu a mão daquela menina". Eis outra característica importante do relato: em várias ocasiões, Serva faz uma reflexão sobre a sua profissão. Expõe a angústia de quem vive uma contradição inevitável quando se trabalha como correspondente numa guerra: a de se sentir, a um só tempo, solidário e estrangeiro. Essa reflexão inclui a descrição de seu encontro com outros jornalistas, sempre num tom bem-humorado e até afetivo. De repente, os nomes dos correspondentes deixam de ser apenas aquelas letrinhas impressas para designarem seres humanos concretos. Leitores "leigos" e mesmo colegas jornalistas têm acesso a uma faceta do "mundo das notícias" que normalmente permanece oculta. O estereótipo do profissional frio e capaz de transmitir as notícias com "objetividade" cede lugar a indivíduos de carne e osso, afetados pelos seus próprios problemas e pelo cenário da guerra. Há também toda uma preocupação em amenizar a leitura mediante a utilização de intertítulos imaginosos: "Croácia, Gravata, Croissant"; "Sol e Solidão"; "O Coronel Ajuda Quem Madruga". O texto é agradável, com boas tiradas, como: "Os jornalistas são atraídos pelas histórias e imagens de refugiados que vão dar tempero a seus artigos. Os refugiados são atraídos pelos jornalistas que vão dar algum tempero à sua vida". Mas em alguns momentos, Serva escorrega e usa figuras metafóricas inadequadas: "a notícia de sua morte caiu como uma nuvem negra..." (nuvens não caem, no máximo envolvem). Outras vezes, seu inimigo é o preconceito: "Safet há de me perdoar, mas à medida que falava, no escuro do bunker improvisado, cheguei a pensar que um romance não assumido uniu os dois homens de etnias diferentes". Perdoar o quê? A atração entre amigos diminuiria a estatura moral de Safet? Serva dedica o apêndice "Gênesis" a um histórico da guerra civil, que resultou excessivamente longo e dispensável. Na verdade, é chato mesmo. Além disso, faz algumas afirmações muito discutíveis. Por exemplo, a de que Josip Tito teria sido o Stalin da Iugoslávia. Para além destes pequenos problemas, o livro é uma importante contribuição para quem quer compreender o que se passa na ex-Iugoslávia. Mais ainda porque o pobre leitor brasileiro é vítima da ausência de notícias sobre política externa na imprensa, que se limita a reproduzir –e, em geral, a piorar– o que dizem as agências internacionais. Texto Anterior: Lembranças de um país perdido Próximo Texto: UTOPIA 2 Índice |
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