São Paulo, domingo, 25 de setembro de 1994
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As mil faces da guerra em Sarajevo

JOSÉ ARBEX JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em "A Batalha de Sarajevo", Leão Serva descreve cenas da guerra civil na Bósnia-Herzegovina, onde esteve três vezes, entre 1992 e 1993, como correspondente da Folha. Seu relato faz uma clara opção pelo detalhe, pelos fatos do cotidiano, pelas emoções mobilizadas pela guerra.
Como num romance, os personagens são identificados por seus nomes, hábitos, crenças, famílias, angústias e esperanças. A guerra deixa de ser algo anônimo, um jogo frio de interesses em choque. Ela adquire face –ou melhor, mil faces. A guerra se torna humana.
Este é o ponto forte do livro, o que o torna distinto da maioria de outros sobre o mesmo tema. O detalhe, aqui, não é um simples recurso estilístico. É a razão de ser da obra. É sua substância.
Há momentos que emocionam. Por exemplo, quando narra seu encontro com a menina Aida, gravemente ferida num hospital de Bihac (de maioria muçulmana): "Me senti nu, despido de toda a humanidade, um cúmplice de quem destruiu a mão daquela menina".
Eis outra característica importante do relato: em várias ocasiões, Serva faz uma reflexão sobre a sua profissão. Expõe a angústia de quem vive uma contradição inevitável quando se trabalha como correspondente numa guerra: a de se sentir, a um só tempo, solidário e estrangeiro.
Essa reflexão inclui a descrição de seu encontro com outros jornalistas, sempre num tom bem-humorado e até afetivo. De repente, os nomes dos correspondentes deixam de ser apenas aquelas letrinhas impressas para designarem seres humanos concretos.
Leitores "leigos" e mesmo colegas jornalistas têm acesso a uma faceta do "mundo das notícias" que normalmente permanece oculta. O estereótipo do profissional frio e capaz de transmitir as notícias com "objetividade" cede lugar a indivíduos de carne e osso, afetados pelos seus próprios problemas e pelo cenário da guerra.
Há também toda uma preocupação em amenizar a leitura mediante a utilização de intertítulos imaginosos: "Croácia, Gravata, Croissant"; "Sol e Solidão"; "O Coronel Ajuda Quem Madruga".
O texto é agradável, com boas tiradas, como: "Os jornalistas são atraídos pelas histórias e imagens de refugiados que vão dar tempero a seus artigos. Os refugiados são atraídos pelos jornalistas que vão dar algum tempero à sua vida".
Mas em alguns momentos, Serva escorrega e usa figuras metafóricas inadequadas: "a notícia de sua morte caiu como uma nuvem negra..." (nuvens não caem, no máximo envolvem).
Outras vezes, seu inimigo é o preconceito: "Safet há de me perdoar, mas à medida que falava, no escuro do bunker improvisado, cheguei a pensar que um romance não assumido uniu os dois homens de etnias diferentes". Perdoar o quê? A atração entre amigos diminuiria a estatura moral de Safet?
Serva dedica o apêndice "Gênesis" a um histórico da guerra civil, que resultou excessivamente longo e dispensável. Na verdade, é chato mesmo. Além disso, faz algumas afirmações muito discutíveis. Por exemplo, a de que Josip Tito teria sido o Stalin da Iugoslávia.
Para além destes pequenos problemas, o livro é uma importante contribuição para quem quer compreender o que se passa na ex-Iugoslávia. Mais ainda porque o pobre leitor brasileiro é vítima da ausência de notícias sobre política externa na imprensa, que se limita a reproduzir –e, em geral, a piorar– o que dizem as agências internacionais.

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