São Paulo, domingo, 25 de setembro de 1994
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O antinarciso

Schwarzenegger carrega seus músculos com ironia

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O Último Grande Herói" (The last action hero) de John McTiernan, com Arnold Schwarzenegger, foi um (relativo) fracasso de bilheteria. Nem o público europeu salvou o filme de um destino médio. Para os escassos espectadores entusiastas (é o meu caso), a explicação veio pela boca de John Cameron, diretor do recém-lançado filme com Schwarzenegger: "True Lies" (mentiras verdadeiras). Em uma entrevista (que a Folha publicou), ele explicava que, em "The Last Action Hero", a ironia era excessiva.
O filme conta a história de um garoto que, graças a um bilhete mágico do grande Houdini, penetra no universo paralelo de seu herói preferido, Jack Slater, e participa de uma de suas aventuras. Mais tarde Slater o segue de volta, por um tempo, na Nova York dos humanos normais. Talvez a oposição, entre a Los Angeles de Slater e uma Nova York demasiadamente humana, fosse brutal. Claro que sabemos que os heróis da tela nunca morrem, que seus automáticos estraçalham e param os carros, assim como sabemos que, na realidade, quebrar um vidro a socos dói, como doem as balas dos outros. Mas até onde queremos que nos lembrem disso?
No mesmo filme, a pirotecnia de citações cinematográficas (do "Hamlet" de Lawrence Olivier de Uzi na mão e decidido a acabar com Cláudio & Co., à corrida de bicicleta de "E.T.", à morte do "Sétimo selo" de Bergman passeando pelas ruas) fazia o prazer dos cinéfilos, mas talvez lembrasse demais aos espectadores que se tratava de um filme e que eles eram uma platéia de cinema. "The Last Action Hero" não deixava um momento de ironizar as ilusões com as quais alimentamos nosso narcisismo.
Não é por acaso que o filme parece se recuperar no vídeo. Talvez, na sala escura, mas onde sentimos a presença dos outros, a insistente lembrança de nossa inadequação às imagens gloriosas do herói seja intragável. No conforto de nossos quartos, sozinhos, a coisa é melhor tolerável.
Cameron, que assim entendeu o fracasso de "The Last Action Hero", não por isso desistiu completamente de seu espírito crítico. Este aliás, é aparentemente uma marca do próprio Schwarzenegger, como se ele não pudesse aguentar o valor ideal de sua massa muscular sem uma ironia nada cúmplice, que joga o espectador no mal-estar. Uma maneira de dizer: eu não me tomo pela encarnação de teu sonho. E agora, o que você vai fazer, como você vai lidar com suas intermináveis sessões de cultura física e suas proteínas concentradas?
Com "True Lies" o jogo é menos brutal. A história é conhecida: um verdadeiro agente secreto federal mente sobre sua profissão para a mulher, a qual se aborrece um pouco de ser casada com um aparente banal vendedor de computadores. E um banal vendedor de carros usados tenta conquistar mulheres aborrecidas fingindo de ser um agente secreto. Ao fim, a verdade é restabelecida. Mas qual verdade? Qual é a verdadeira mentira? A de Schwarzenegger que mente quando pretende ser um comerciante? Ou a do vendedor de carros que, mentindo, diz a verdade sobre nossos sonhos de uma vida outra, feita de risco, ação, mistério e glória?
Após a lista dos créditos (esperem até o fim), aparece o assistente do herói, fechado na camionete de onde se comunica com Schwarzenegger em plena ação. Ele comenta que já faz dez anos que só assiste, escuta e auxiliar a distancia, fechado aí dentro; está na hora dele sair e entrar na ação. Sua queixa repete o que já sabíamos pela mulher do herói: passamos esperando 15 minutos de glória, que possam nos projetar no universo neoplatônico das imagens amáveis, no mundo das estrelas. Aí na camionete, somos nós mesmos na sala de cinema.
E as verdadeiras mentiras talvez sejam aquelas graças às quais vivemos, próximas das do vendedor de carros usados. Pois, será mesmo que ele se finge agente secreto para conquistar burguesas aborrecidas, ou será que este é um jeito que ele encontrou para aguentar sua existência?
Vivemos em um mundo onde talvez a subjetividade só encontre consistência pelas imagens que o repertório midiático nos propõe como amáveis (não tanto por nós, mas pelos outros). A cada esquina nos deparamos com espelhos invertidos que não nos refletem: são imagens pintadas que nos delegam paradoxalmente a tarefa de refleti-las. Neste universo narcísico onde os espelhos somos nós, Cameron e Schwarzenegger encontram uma medida certa.
Ou seja: uma ironia suficiente para que o filme não proporcione apenas um flash de }drogadito, o tempo de uma ilusória identificação plena com uma imagem (geralmente seguido de depressão post-coitum quando a luz se acende e vergonhosamente nos encaramos, de volta para o presente, entre copos de pipoca e saquinhos de balas). Como medida preventiva, aliás, a mulher de Schwarzenegger, ao descobri-lo pela primeira vez em ação, exclama: "Casei com Rambo". Mas também o filme, ao contrário de "The Last Action Hero", garante uma dose suficiente de gozo narcísico para não afugentar o espectador.
Qual pai de família não se imagina aparecendo milagrosamente ao comando de um Harriet bem embaixo de sua própria filha pendurada no vazio, sobretudo se esta, como é natural, o considera um perfeito babaca? O próprio tema central do cenário, aliás, consegue ao mesmo tempo lisonjear nossa aspirações narcísicas e revelar um dos artifícios pelos quais as alimentamos. Pois, a idéia de termos uma vida verdadeira escondida, mas que coincidiria com os sonhos de todos, é uma fantasia básica em uma cultura narcísica.
Ela resgata nossa miséria: não gostam de nós porque não sabem o que somos e não sabem porque não podemos lhes dizer, por nossa modéstia: é o último reduto narcísico. Quer seja nas fantasias diurnas de impossíveis paternidades milagrosas (Getúlio e Pelé conheceram nossas mães), quer seja nos sonhos de terceiro tipo (os extraterrestres nos levaram 72 horas, mas não podemos dizer), quer seja ainda e mesmo na suposta abjeção (na empresa ninguém imagina que de fato, à noite, nos entregamos a impiedosos bárbaros fardados de couro) e por aí vai. Se tivermos sorte, um dia os outros saberão e nos amarão, mesmo a título póstumo, por descobrirem que pertencíamos também ao mundo das estrelas.
As imagens amadas nunca foram tão massificadas como hoje (não se preocupem, ainda pode piorar). Por isso mesmo nunca doeu tanto a decepção de um cotidiano vivido como tragicamente distante dos modelos que lhe são propostos. De fato, quanto menos estes são diversificados, tanto menos eles são atingíveis.
Pode-se resistir à massificação, tentar diversificar as imagens que regram nossa conformidade. Mas há também uma ética (formal, esta) para tempos narcísicos, que trilham McTiernan, Cameron e sobretudo Schwarzenegger. Ela consiste, embora aceitando os espelhos invertidos de massa, em rir das artimanhas para servi-los.
Talvez pareça pouco, mas é melhor do que o flash que proporcionam os heróis sem humor. Também é melhor do que o eterno sorriso de quem vende a ilusão que o acesso ao mundo das estrelas, a conformidade com as imagens felizes, está ao alcance da mão, que basta passar, mesmo por um instante, do outro lado da tela e receber, por exemplo, um ovo na cabeça ou se jogar no chão a catar dinheiro.
A propósito: outro dia, W.E. Tager, 46 anos, de Charlotte, Carolina do Norte, entrou nos estúdios da NBC, no Rockefeller Center em Nova York, com um AK47. Por sorte, conseguiu apenas meter uma bala em um único auxiliar de produção. Ele disse, resumidamente, que durante 20 anos a televisão controlara sua vida. O sr. Tager não está completamente errado.

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