São Paulo, quarta-feira, 28 de setembro de 1994
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Lacaz transfigura relações na cidade grande

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Passar pelo viaduto do Chá nunca foi uma experiência agradável. Os piores mendigos da cidade –isto é, os mais doentes, os portadores das deformidades mais espantosas– se concentram ali, ao lado de camelôs tristíssimos.
Eis que, o artista Guto Lacaz instalou no prédio da Eletropaulo um imenso periscópio. Tudo mudou, desde o último sábado.
Reações espantosas se produzem. O periscópio de Guto Lacaz liga o rés-do-chão ao quinto andar do edifício, onde outras obras de arte esperam o visitante. Você está na rua e consegue ver, graças a um gigantesco aparelho ótico, as pessoas que estão lá em cima.
Inicialmente, aquilo parece um espelho. O grupo de pessoas no térreo olha a imagem de um grupo de pessoas também. São as pessoas que estão no quinto andar do prédio que se aglomeraram, como você na rua, para se verem, ao mesmo tempo diferentes e iguais.
Saio dessa experiência mais feliz, mais leve, mais humano.
Cada pessoa no térreo fica com vontade de comunicar-se com o grupo que a vê do quinto andar. Produzem-se eventos lindos. Alguém arrisca um aceno para quem está lá embaixo. O aceno é respondido. Um moleque de rua, no térreo, pede um cigarro para o grupo do quinto andar. Não há problema: alguém joga o cigarro, e este despenca de cima.
Outros meninos, no quinto andar, fingem suicidar-se com gestos trágicos. O truque não é difícil. Abaixam-se, fugindo assim do campo visual do espelho; quem está no térreo acha que a pessoa desapareceu, ou atirou-se.
Pode-se pensar um pouco no sutil paradoxo envolvido nesta obra de Guto Lacaz. O periscópio possibilita uma tentativa de comunicação entre pessoas desconhecidas –ao mesmo tempo que impede qualquer forma de comunicação verbal. Você não ouve nada do que é dito no quinto andar; só pode comunicar-se por meio de gestos. Como as crianças que, do vidro traseiro de um carro, fazem um tchau, e a gente responde.
Infantilidade, é claro, constitui a chave para as obras de Guto Lacaz. Seria injusto classificá-lo como "artista plástico", palavra que serve a todo tipo de empulhação. Ele é uma espécie de inventor maluco, de professor Pardal. As geringonças que constrói não são, entretanto, apenas um exercício de humor performático, desse sarcasmo tão pesado e sinistro que acomete a vanguarda quando se pretende irônica e destrutiva.
O melhor de Guto de Lacaz é que ele sabe guardar a pureza gratuita, a criancice, em suas obras. E em toda criancice há uma vocação de humanidade. Não é à toa que se diz: "Todas as pessoas nascem iguais". Ou seja, são iguais antes que a sociedade lhes imponha diferenças de classe.
Diferenças que Guto Lacaz dissipa em suas obras, ao fazer de todos nós umas crianças encantadas, acenando umas às outras através de seu periscópio, na distância miraculosamente vencida sem palavras, entre os que estão embaixo e os que estão no quinto andar.
E todo milagre é feito sem palavras. A utopia da "arte plástica", nesse sentido, se realiza. Claro que de modo efêmero –mas uma transfiguração das relações pessoais dentro da cidade foi conseguida, por meio desse artefato. Guto Lacaz.
Georg Simmel, o sociólogo alemão, comentou a extrema desumanidade que há nas grandes metrópoles. Pessoas se comprimem em um ônibus, estão mais unidas do que nunca e, todavia, não trocam palavras, não se comunicam.
União perversa e impessoal, portanto.
Todos nós estamos mais juntos do que nunca e nos separamos nessa intimidade.
O evento promovido pela Secretaria de Estado da Cultura procura mostrar, ao contrário, os "fluxos" da cidade. Os intercâmbios comerciais, o trânsito, a mobilidade, a passagem.
Lacaz radicalizou essa idéia de "passagem" e de "fluxo", tornando instantâneo e mágico o transporte das pessoas através de um periscópio.
Ainda haveria muito o que falar de toda a exposição. Muitas coisas, na mostra Arte Cidade, merecem ser comentadas.
Claro que não gostei de tudo.
Apesar disso, reservando espaço para outro artigo, preferi só falar de Guto Lacaz.
Zureta, maluquete, gratuito? Talvez ele seja tudo isso. Mas, se ele consegue um feito como o de sua instalação no viaduto do Chá e nos encanta com isso, é porque sua maluquice não é tão zureta assim, e a gratuidade que ele produz nos eleva, como um periscópio, instantâneo e gracioso, a alturas que, quem sabe, sejam nossas mesmo: as alturas que há quando somos simplesmente humanos.
P.S. 1 - Num elogio à gratuidade, fiz uma homenagem a Guto Lacaz. Junte a primeira letra de cada parágrafo, e o periscópio de Guto Lacaz vai aparecer.
Foi um exercício bobo, inconsequente; mas, afinal, o próprio Guto nos dá direito a sermos crianças de vez em quando.
P.S. 2 - Silvio Lancellotti me mandou um fax simpaticíssimo, concordando com o que eu disse sobre Pavarotti, Carreras e Domingo na "Ilustrada" de 16 de setembro. Corrige-me quanto as origens do "pêssego Melba". Detalhes na pág. 125 de seu livro "A Cozinha Clássica" (Art Editora), que toda pessoa culta deve ler.
P.S. 3 - Uma leitora adverte quanto a erro de digitação no meu artigo de 19 de agosto sobre Rodolfo Valentino. O filme que eu estava comentando ("A Águia") não se baseia num romance inacabado de "Punchio", como saiu escrito, mas sim de Puchkin (1799- 1837).
Caio Fernando Abreu publicou, no "Caderno 2" de "O Estado de S. Paulo", um artigo no qual se revela portador do vírus HIV. O artigo, secretamente anunciado em duas crônicas anteriores, é belíssimo. Evita qualquer facilitarismo sobre o tema: não é trágico, não é sensacionalista, não tem autocomiseração, não reivindica piedade. É a palavra de alguém digno e corajoso, é o texto de um escritor e de um homem.

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