São Paulo, sexta-feira, 30 de setembro de 1994
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John Waters leva 'trash' ao estrelato

'Mamãe É de Morte', novo filme do diretor, estréia em SP

RICARDO CALIL
EDITOR-ASSISTENTE DA ILUSTRADA

Filme: Mamãe É de Morte
Direção: John Waters
Elenco: Kathleen Turner, Sam Waterston, Ricki Lake
Onde: Olido 3, Cinearte, Arouche A, Paulista 1, Calcenter 2

John Waters quer esquecer a fama de maldito. O mais "trash" dos cineastas afirma que perdeu a fúria do passado, depois de três décadas de carreira.
Ele diz que não pretende repetir as piadas que o consagraram como o "barão do mau gosto", "príncipe do vômito" ou "rei do kitsch".
Os filmes de Waters, como "Pink Flamingos" e "Hairspray", são marcados pelo universo bizarro e pela parceria com o travesti Divine, morto em 1988.
Hoje, o diretor americano prefere combater o sistema de dentro. Seu novo filme, "Mamãe É de Morte", estréia hoje em São Paulo com uma estrela do primeiro time (Kathleen Turner), produção de US$ 13 milhões, e depois de colher sucesso de público e crítica nos EUA e Europa e ser exibido em Cannes como hors-concours.
As novidades, porém, não diluíram o estilo inconfundível de Waters. Em entrevista à Folha, de Baltimore (EUA), por telefone, o diretor falou sobre seu novo filme e as mudanças em sua carreira.

Folha - Você acredita que encontrou uma substituta para Divine em Kathleen Turner?
John Waters - Seria impossível substituir Divine. O primeiro filme que fiz após sua morte ("Cry-Baby", 1990) foi estrelado por um homem, Johnny Depp, para o público ter certeza de que eu não queria substituí-la. Mas Turner e Divine são semelhantes em alguns pontos. Nenhuma delas é uma mulher normal –uma era um homem e a outra é uma estrela de cinema.
Folha - Em "Mamãe É de Morte", você lida com elementos do "mainstream". Você teve dificuldades com isso?
Waters - Não. Em "Hairspray" e "Cry-Baby" eu já havia trabalhado no sistema dos estúdios. Foi uma coisa gradual. Eu não quero andar para trás. Eu tenho orgulho dos velhos filmes que fiz, mas se tentasse fazer algo como aquilo agora, soaria falso.
Folha - Por quê?
Waters - Porque não tenho mais 20 anos, nem aquela fúria, aquela raiva de antigamente.
Folha - Mas boa parte dos elementos de filmes antigos, como a atração pelo kitsch, permanece.
Waters - Se eu tivesse mudado radicalmente, não faria um filme com um final feliz para um "serial killer". Mas, com US$ 13 milhões, não posso fazer um filme que só seja exibido nas sessões da meia-noite. Eu não sou trouxa.
Folha - Em seu livro "Crackpot" (Maluco), você escreveu: "Eu sempre quis me vender, mas ninguém queria me comprar". Você encontrou alguém?
Waters - Era uma brincadeira, mas com fundo de verdade. Acho que nunca me vendi. Eu poderia ter feito um monte de grandes filmes hollywoodianos, ter ganho um monte de dinheiro, se dirigisse uma porcaria de outra pessoa.
Folha - "Mamãe É de Morte" é seu maior sucesso. Quem mudou –Waters ou o público?
Waters - Os dois mudaram um pouco. Eu encontrei um novo público, que não viu meus primeiros filmes. Esse público levou o mesmo choque que o antigo ao ver "Pink Flamingos".
Folha - Você acha que o sucesso de "Mamãe É de Morte" pode ser explicado por um renascimento dos "trash movies"?
Waters - Nos velhos tempos, esses filmes eram chamados "camp". Agora, chamam de "trash". Eu diria, modestamente, que tenha algo a ver com a popularidade do "trash". O "trash", finalmente, pode ser considerado algo bom. Antes, diziam "é tão ruim que chega a ser bom". Agora, é simplesmente "bom".
Mas eu acho que a razão de "Mamãe É de Morte" ter encontrado mais público é simples: todos querem matar cinco pessoas por dia. É por isso que vamos ao cinema: para viver nossas fantasias, mesmo as pouco saudáveis.
Folha - Seria o mesmo efeito de "Um Dia de Fúria", com Michael Douglas?
Waters - Aquilo era a vingança do branco contra minorias. A protagonista de "Mamãe É de Morte" é politicamente correta, teria votado em Clinton, defenderia os direitos dos gays. É uma liberal.
Folha - Você reserva parte de seus ataques aos politicamente corretos, como quando ironiza as pessoas que reciclam o lixo.
Waters - Discordo. A protagonista é politicamente correta. Quanto ao lixo, é só uma brincadeira, porque nos Estados Unidos não reciclar é pior do que matar. É necessário definir prioridades.
Folha - Porque sua obsessão por coisas bizarras, como na cena em que Turner espirra em um bebê no meio de uma missa?
Waters - Foi um acidente. Ela não tinha intenção.
Folha - Ela não, mas você sim.
Waters - Sim, porque eu já pensei em fazer algo como isso para matar o tédio. OK, foi típico de John Waters, mas eu acredito que meu público quer isso.
Folha - O que mudou entre essa cena e aquela em que Divine come cocô de um poodle, em "Pink Flamingos" (1972)?
Waters - A primeira piada foi mais real, e mais mágica. Mas eu desisti de fazer esse tipo de piada. Tenho orgulho daquela cena. Foi a coisa mais nojenta de qualquer filme, o que já é muita coisa.
Folha - O que você leva de sua vida particular para as telas?
Waters - Quase tudo. Não vivo como meus personagens, mas algumas coisas aconteceram comigo. Muitas pessoas vêm para Baltimore e dizem: "Eu sempre achei que seus filmes eram fantasias. Agora, parecem documentários."
Folha - Quais são suas principais influências no cinema?
Waters - São muito extremas: Ingmar Bergman e filmes "camp"; filmes de arte e pornográficos. Um dia após ver Bergman, ia ver Russ Meyer (diretor obcecado por seios grandes) e William Castle (diretor de filmes B). Todos filmes extremos. Em qualquer direção, menos no meio.
Folha - Você conhece o brasileiro Zé do Caixão?
Waters - Eu vi um filme dele, não lembro do nome, e li artigos sobre ele. Também é algo extremo. Mas a vida dele parece ainda mais assustadora.

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