São Paulo, domingo, 1 de janeiro de 1995
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Afogando em números

MARCELO LEITE

Responda rápido: em que dia começa o século 21? Se pensou 1º de janeiro de 2000, errou. O próximo milênio começa daqui a exatos seis anos, e não cinco. Ou seja, no primeiro dia de 2001.
É simples, como explicou minha colega Gina Lubrano, ombudsman do jornal norte-americano "The San Diego Union-Tribune", em coluna recente.
O primeiro ano da Era Cristã foi o de número um, não zero. Portanto, o primeiro século terminou em 31 de dezembro do ano 100, e não 99. E assim por diante...
Será difícil convencer as pessoas de que teriam de esperar mais 366 dias pelo terceiro milênio. A maioria vai comemorar no réveillon de 2000. O de 2001 ficará reservado para os matematicamente corretos.
De minha parte, vou já preparando-me para festejar duas entradas milenares, o que nem Matusalém conseguiu. Vai ser "D+", como escreve a moçada.

Essa confusão comum com anos, séculos e milênios é só mais um exemplo da dificuldade que as pessoas tem com números. Ela é tão séria que se deveria adotar o neologismo "inumerado" (por analogia com "iletrado").
Lamento dizer que, nesta matéria, ninguém supera os jornalistas.
Em primeiro lugar porque todos eles, do mais beócio dos focas ao mais posudo dos editores, fetichizam os números. Em sua suposta assepsia, as cifras encarnariam a mítica da objetividade, confundindo-se com a própria noção de informação.
Julgando-se no papel de oráculos –ou "interface"– entre leitores mortais e esse Olimpo de infinitos deuses, repórteres e redatores acabam por confundir Ártemis com Palas-Atena e escrevem milhão em lugar de bilhão. Decerto acham que ninguém vai perceber.
Enganam-se cubicamente: há mais leitores atentos do que se poderia imaginar. Muitos deles terão notado que escrevi acima 366 e não 365 dias, para me referir ao último ano do segundo milênio. Boa parcela concluiria que foi erro de digitação, mas os verdadeiramente atentos se perguntarão: será que 2000 é bissexto?
É.

Em homenagem a esses leitores que reverenciam a verdadeira divindade dos números, a Exatidão, recolhi nestes três meses alguns delitos representativos dessa idolatria negligente que jornalistas dedicam aos números. Começo por um caso muito curioso do caderno Folhateen, um dos poucos que motivou resposta da Redação ao ombudsman.
A multiplicação dos padres - Em 31 de outubro, uma segunda-feira, o caderno dedicado a jovens ("teens", mais uma macaquice da classe média Miami-Reebok-celular) trazia embasbacante reportagem na capa. Contrariamente a tudo que se ouviu e viu em 20 anos, o título sustentava que "Vida nos seminários volta a atrair jovens".
O busílis aritmético estava na linha-fina, jargão de jornalistas para o subtítulo usado para explicar o título: "Procura pela atividade religiosa entre os adolescentes no Brasil aumentou quase dez vezes na última década" (destaque meu).
Ora, a leitura do texto revelava que o total de noviços em todo o Brasil passara de 64 em 1980 para 657 em 1990. Apontei na crítica interna da edição que redijo diariamente que a quantidade tinha aumentado quase 11 vezes, não 10, e supus confusão com o percentual citado no texto, de 926%.
Recebi então da editoria um arrazoado particularmente ilustrativo da mentalidade segundo a qual vale quase tudo para não publicar um Erramos. Leia:
"O aumento verificado foi de 926% (...). O aumento foi de 593 seminaristas, portanto, é de 9,26 vezes. Isso porque os 64 seminaristas iniciais não podem ser incluídos na conta; eles já estavam lá desde o princípio.
"A confusão que (...) o ombudsman cometeu se deve ao modo genérico de as pessoas se referirem a estes aumentos, que é, entretanto, inexato.
"A lógica da coisa é a seguinte: quando uma coisa aumenta uma vez, ela dobra, isto é, tem aumento de 100%. Se dissermos que aumentou duas vezes, o número terá triplicado. Por exemplo, se o número inicial for 10, um aumento de duas vezes levaria a cifra a trinta (10'(10x2)=30), triplicando o nosso dez. E assim por diante."
É ocioso dizer que a aula não convence. Os 64 noviços não "estavam lá desde o princípio" coisa nenhuma, pois em dez anos já tinham tido tempo suficiente para se ordenar ou desistir de vez do celibato. Os 657 de 1990 eram todos seminaristas frescos.
Isso para não argumentar que qualquer pessoa normal diria que o aumento foi superior a dez, se apresentada aos números 64 e 657. E é para pessoas normais que se escreve jornal.
As vendas negativas - Um mistério cerca as edições regionais da Folha (cadernos que circulam em parte do interior do Estado de São Paulo). Por duas vezes neste trimestre comprovaram em títulos de primeira página que as porcentagens fazem os jornalistas escorregarem também na queda, e não só na subida.
"Comércio tem queda de 550% nas vendas", alardeava a Folha Sudeste para a região de Campinas no último dia 13. Sua congênere Folha Norte (região de São José do Rio Preto) anunciara 16 dias antes: "Preço de importados é até 115% mais baixo".
Nada pode cair mais do que 100%, pois não é possível vender menos do que zero. A não ser, é claro, que comerciantes imbuídos do espírito natalino, ou inebriados com o perfume do real, tenham decidido pagar para que os clientes levem suas mercadorias.
A cidade dos deprês - No dia 16 de novembro, o jornal publicou uma curiosa reportagem: "50% dos moradores de Itapuí usam calmantes". Fiquei imaginando que maldição poderia ter levado essa cidadezinha 330 km a noroeste da capital paulista à beira de um ataque de nervos.
Impotente para resolver o enigma, apresentei à Redação o seguinte raciocínio, com base no pouco de bom senso que me resta após 15 anos de jornalismo:
"Parece exagero. Afinal, a cidade deve ter crianças e jovens, também. Se seguir a distribuição etária da população brasileira, arriscaria dizer que metade da população da cidade deve corresponder a toda a população maior de 18 anos. Todos, sem exceção, tomam calmantes?"
Em 22 de novembro, escreveu-me o itapuiense Antonio Carlos Bueno de Moraes. Seu fax demoveu-me de desacreditar definitivamente do dito do filósofo francês René Descartes (1596-1650), "o bom senso é a coisa mais bem-repartida do mundo":
"Considerando que a pequena Itapuí possui 9.051 habitantes (censo 1991) e que 41% têm até 19 anos (3.674 habitantes), praticamente o restante da população estaria consumindo calmantes."
Tanto Moraes quanto este ombudsman tinham deixado de ver, na edição do dia 19, uma nova reportagem retificando a informação alarmante (provavelmente por ter sido editada com destaque menor do que o delírio anterior). O contingente correto de consumidores de calmantes era 16% –da população adulta!

Resumo da ópera: o bom dos números, em sua clareza e distinção (para voltar a Descartes), é que não exigem talento especial para a verificação; o ruim de sua simplicidade é que jornalistas não lhes atribuem valor e não têm pudor de atropelá-los, como de hábito fazem com a gramática.

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