São Paulo, terça-feira, 3 de janeiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ano novo, vida nova

ROBERTO CAMPOS

O mais urgente problema do país é a recuperação da operacionalidade do Estado
Barris de tinta e toneladas de papel estão sendo gastos, aos montes, para noticiar, comentar, fazer vaticínios e recomendações (está na moda um tom solene ginasiano, talvez reação ao ambiente político anaecoide, onde as vozes da racionalidade não repercutiram). O tom geral de esperança, que há muito tempo nos fazia falta, é muito bem vindo, não só porque este povo o merecia, como porque é mais do que útil, é politicamente necessário.
Mas já voltaremos a isso, passando por um breve comentário sobre duas medidas que se complementaram: a primeira foi o bloqueio das contas de uma vintena de municípios e empresas estatais, e de dezenove Estados, que não pagaram, na data do vencimento, a respectiva parcela dos juros da dívida externa rolada em 94; e a segunda, foi a intervenção branca no Banespa e no Banerj, os dois maiores bancos estaduais do país, e dos mais notórios exemplos de tudo o que está errado com a ação do Estado na economia brasileira –e com o nosso processo político.
A necessidade das medidas era indiscutível. Estados, municípios e estatais estão acostumadas a levar na flauta os compromissos que firmam, porque depois entram as "considerações políticas" e a União (isto é, nós todos) paga. E, no caso dos dois bancos estaduais em tela, o fato é que não só se tinham tornado inadimplentes, como já haviam chegado a uma situação quase irrecuperável de dentro para fora.
É certo que a medida beneficia dois novos governadores, ambos do PSDB e, aliás, reduz futuros custos políticos para o novo presidente. Mas os beneficia apenas por lhes reduzir o ônus de ter de remendar a quase insolúvel situação deixada pelas desastradas administrações anteriores –em nenhum dos casos, por culpa ou omissão dos governos federal e estaduais que se iniciam agora. Mas o ato é de grande importância nacional, absolutamente necessário e oportuno. Não seria o caso de deixar de praticá-lo apenas porque viria aliviar os novos governos de dois grandes Estados de encargos devidos à má gestão alheia.
Vale a pena ressaltar o notável "timing" das duas decisões: a primeira, "em cima da bucha", e a segunda, no último dia útil, no feriado bancário, sem tempo para qualquer dos governadores que se despediam recorrer a uma liminar de algum juiz novato ou mal informado (a desordem da hierarquia jurídica é um dos problemas mais sérios com os quais o governo vai ter de haver-se e tem que ser resolvido para que a norma se torne transparente para o cidadão e não um domínio aleatório ou casuístico).
Os bancos estaduais sempre foram maleáveis aos interesses políticos dos governadores e dos partidos no poder, focos de empreguismo e de favores que em pouco se distinguem das formas de corrupção contra as quais o público ficou, desde 1992, compreensivelmente alérgico. Essas instituições de crédito acabaram fazendo o papel de bancos emissores, uma espécie de banquinho central dos governos estaduais, descontando papéis da dívida mobiliária destes, emitidos para pagar gastos quase que sempre de interesse político imediato das pessoas no poder.
Naturalmente, não existe a menor justificativa para a existência de bancos estaduais. É duvidosa a vantagem de bancos oficiais em qualquer nível de governo, Federação, Estados, municípios, ou o inefável Distrito Federal. A exceção seria a das instituições financeiras de fomento (eu mesmo fui responsável pela idéia do BNDE, hoje enfeitado, na cauda, com um "S" boboca de "social" –o senso do ridículo tem sido uma das virtudes mais escassas do Brasil oficial; "sociais" são os gastos, não os bancos).
Outras possíveis exceções seriam as agências financiadoras do comércio exterior e outras muito especializadas que, em princípio, só cabem na esfera Federal ou, quando muito, regional. O país dispõe, aliás, de dois gigantescos bancos oficiais (BB e CEF) e de uma das redes bancárias privadas mais eficientes e sofisticadas do mundo.
A medida vai, no entanto, muito além do saneamento dos bancos estaduais e nisso reside a especial importância do seu "timing". Um dos mais complicados problemas com que terá de se haver Fernando Henrique Cardoso é o desregramento financeiro dos Estados e municípios. E aí, infelizmente, as causas são políticas e, por conseguinte, muito complicadas de tratar por um governo que precisa de apoio para levar a cabo uma limpeza cirúrgica da Constituição de 88.
Foi pena que, na malograda Revisão Constitucional, por motivos vários, que agora é escusado examinar, o governo passado (de que o novo presidente participou como ministro da Fazenda) não se tivesse esforçado além do Fundo Social de Emergência.
Hoje, a distribuição dos partidos no Congresso tornou mais difícil e delicado o jogo das mudanças. Os políticos, evidentemente, têm de visar, antes de mais nada, às eleições. E o atual sistema eleitoral do país –proporcional para as instâncias legislativas, com exceção do Senado– é um fator tremendo de atraso e instabilidade. E mudá-lo para um sistema misto distrital-proporcional (que parece ser a escolha das pessoas pensantes no país) só produziria efeitos a partir do próximo governo.
Sinalizar aos novos governos estaduais que os compromissos têm de ser respeitados, e que os respectivos bancos não poderão mais servir como fontes de recursos extra-arrecadação, são passos fundamentais, neste momento. O governo federal não tem porque ser bicho-papão, mas tampouco pode virar "tigre de papel". O mais urgente problema do país é a recuperação da operacionalidade do Estado. E isso quer dizer respeito às regras do jogo. O Brasil habituou-se, na República Velha, da "política dos governadores", a cumprir as leis conforme a cara do freguês. E nada mais parecido com ela do que a Nova República. Já houve tempo em que se pensava que o grau de desenvolvimento era tanto maior quanto mais as normas reais se aproximassem das formais. É bom relembrar isso. O Brasil moderno não comporta mais contas de chegar.

Texto Anterior: Com estilingue; Outra conta; Crédito garantido; Língua emergente; Crescimento rápido; Em expansão; Casa de ferreiro
Próximo Texto: Custo da cesta básica em SP tem alta de 15,8% no ano
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.