São Paulo, terça-feira, 3 de janeiro de 1995
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Deops monitorou a cultura por 55 anos

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

Erramos: 04/01/95
As fotos do pesquisador Fernando Braga e da ficha de Cândido Portinari no Deops publicadas nesta reportagem são de autoria de Eduardo Knapp/Folha Imagem.
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Foi grafado incorretamente o nome da escritora Lygia Fagundes Telles nesta reportagem.
Os arquivos secretos do Deops (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) exibem uma assombrosa coleção de cultura inútil e, muitas vezes, cômica. Formam também um acervo de imagens e frases que teriam se perdido, não fosse a insistência e imaginação dos "arapongas".
A área cultural foi uma das mais monitoradas, e não só durante o regime militar de 1964. Conforme uma pesquisa inicial e aleatória em cima de nomes conhecidos realizada pela Folha durante uma semana, intelectuais e artistas constituíram opção preferencial dos agentes secretos desde a fundação do departamento, em 1929, e se mantiveram em destaque até sua extinção, em 1984.
Fichas, dossiês e prontuários elaborados pelo órgão estadual nesses 55 anos estão abertos à consulta do público desde o início do último mês, junto ao Arquivo do Estado de São Paulo (r. Antônia de Queirós, 183, tel. 011/256-3515, região central). O interessado em consultar o material deve tirar xerox de um documento de identidade e assinar um termo de responsabilidade. Poderá então solicitar fichas com nomes de pessoas, instituições ou fatos.
Centenas entre as 1,5 milhão de fichas compõem um verdadeiro "star system". A fábrica de sonhos literária, musical e visual era considerada potencialmente uma usina de subversão.
O Deops tinha como objetivo acompanhar as atividades sindicais, estudantis, políticas e sociais, elaborando fichas de suspeitos para controle da polícia. Até 1992, o arquivo ficou depositado na Polícia Federal. Só então passou ao Arquivo do Estado.
Nesse meio tempo, muito material foi extraviado. Segundo o pesquisador Fernando Braga, coordenação do projeto Arquivo do Deops, a documentação veio incompleta e avariada da PF. "O arquivo de informantes foi provavelmente eliminado ainda na PF. Temos apenas a rubrica que indica a existência desse tipo de arquivo."
Braga divide o material em duas séries temáticas: ordem política, que compreendia manifestações e atividades da área, e ordem social, em que se incluíam reivindicações salariais e movimentos estudantis. As ocorrências culturais integravam as duas séries, o que causa uma dificuldade especial na organização do material. O trabalho se realiza desde 1992.
"As pastas estão codificadas com números e letras cujo conteúdo ainda não descobrimos", diz Braga. Provavelmente, os agentes organizavam os suspeitos por área de atuação. Sob o código "50-Z", por exemplo, figuram várias personalidades da área cultural.
Os "arapongas" se ocuparam do setor nos momentos mais agudos de perseguição ideológica, durante a vigência do Estado Novo (1937-1945) e do regime militar, de 1964 até a extinção do Deops. Mas existem relatórios emitidos em períodos mais liberais. Esse fato demonstra a preocupação permanente do Estado com as possíveis ações da intelligentsia.
O Deops fez uma leitura conspiratória da cultura. Os agentes pareciam não saber exatamente que tipo de terreno investigavam. Sua relação com o objeto era de total estranhamento. Daí algumas biografias revelarem mais sobre a visão de mundo da polícia política do que a política cultural.
Sucedem-se relatórios sobre fatos inúteis, escutas telefônicas, fotos roubadas e até peças teóricas criptofascistas.
Quem era o pintor Candido Portinari (1903-1962) para o Deops? "Elemento de grandes atividades no PCB. Falecido em 7 de fevereiro de 1962. Tem auto de qualificação e interrogatório."
A atriz Cacilda Becker (1921- 1969) é chamada de "escritora de peças de teatro". Não há notícia de que tenha escrito um texto no gênero.
Geraldo Vandré, "cantor e compositor subversivo". Em 1968, o Deops chegou a elaborar relatórios diários sobre o autor de "Pra não Dizer que não Falei de Flores".
O cantor e compositor Gilberto Gil "integrava um grupo de cantores e compositores de orientação filocomunista, em franca atividade nos meios culturais."
O diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa foi assim definido em relatório de 1974: "Foi um dos mais respeitados encenadores ortodoxos do teatro brasileiro."
A "atividade principal" do escritor Oswald de Andrade (1890- 1954) era "comunista", segundo seu prontuário. Em 1942, um detetive de codinome Danderay anotou uma conversa do escritor com um "senhor de sotaque estrangeiro", sem tirar conclusão alguma sobre o fato.
A escritora Patrícia Galvão, a Pagú (1910-1962), era "comunista militante, com diversas passagens por esta delegacia". Foi controlada de 1932 a 1950, sem menção alguma sobre sua obra. Era suspeita de ter integrado a Intentona Comunista de 1935.
Exemplo do deslocamento do agente em relação ao território em que agia aconteceu em junho de 1974. Um "araponga" assistiu a uma "Semana de Estudos Brasileiros", na USP, e anotou detalhadamente as conferências de gente como o compositor Camargo Guarnieri, a escritora Lígia Fagundes Telles e o crítico José Ramos Tinhorão. No afã de buscar indícios, o agente do controle político anotou até as piadas dos conferencistas. Não encontrou nenhum indício, além do público e notório ultranacionalismo de Tinhorão.
Fica-se sabendo que Gilberto Gil foi ao show da cantora norte-americana Joan Baez em 22 de julho de 1981, no Tuca, em São Paulo. Vandré lançou um disco em novembro de 1979, "em que foi gravada a letra 'Somos Todos Iguais' ", conforme anota o agente. E daí?
Tudo era vigiado. Há fotos inéditas de uma manifestação da classe teatral em São Paulo em 1968, com flagrantes de Zé Celso, Ruth Escobar, Cacilda Becker e Augusto Boal. O agente designava as pessoas na foto com números anotados com caneta esferográfica.
A escuta telefônica da conversa de Oswald de Andrade ajuda a construir o perfil pessoal do escritor. Ele se despedia dos homens com "um beijo".
Se existe algum, o mérito dos agentes do Deops esteve em registrar cenas que se perderiam por realmente não significarem nada, caso seus protagonistas não tivessem sido estrelas culturais. É só pesquisar para recapturá-las.
Nesse meio século, ou o setor cultural soube driblar a vigilância ou esta se perdeu em sonhos de possíveis subversões.

LEIA MAIS sobre os arquivos do Deops à pág. 5-4

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