São Paulo, terça-feira, 3 de janeiro de 1995
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Governo Fleury deixa testamento cultural

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

Antes de terminar na semana passada, o governo Fleury lançou duas publicações para influenciar a visão do legado cultural que sua gestão em São Paulo deixou: o livro "Arte no Metrô" e o dossiê "Avançar a Cultura".
A primeira foi produzida pelo governo em parceria com a Companhia do Metropolitano de São Paulo, a segunda pela Secretaria de Estado da Cultura (leia texto ao lado), mas ambas têm muito em comum –em especial, o fato de que não informam os gastos do que propagandeiam.
Além disso, ambas estão sendo distribuídas para pessoas do meio cultural –não estão à venda.
O teor dos textos também não deixa dúvida quanto às intenções contidas nos dois lançamentos.
No caso de "Arte no Metrô" –um livro com 155 páginas, capa dura, papel cuchê, quadricromia e textos bilíngues–, o fraseado discorre sobre a "função social" da arte, desempenhada pelo projeto que instalou 76 obras de 42 artistas em 20 estações de metrô.
Segundo texto da crítica Radhá Abramo, "os usuários do metrô conquistaram o sonho utópico de Ruskin" –ou seja, a fusão de estética e ética, arte e ensinamento. Nota: o que é utópico não é conquistável; "u-topos" significa lugar que não existe.
Outro texto, esse não assinado, diz que "quando uma obra de arte aparece fora de seu circuito muda de natureza o intercâmbio entre produtor e receptor" para, em seguida, deixar claro que, no projeto "Arte no Metrô", tal mudança foi sem dúvida para melhor.
Política e marketing à parte, o documento está aí –e talvez seja bom avaliar o que o projeto trouxe de esteticamente interessante. Afinal, São Paulo é uma das poucas cidades do mundo que tem um metrô que pode abrigar obras de arte com certa salubridade.
O projeto já financiou obras de Cícero Dias, Cláudio Tozzi, Mário Gruber, Renina Katz, Tomie Ohtake, Sérgio Ferro, Antonio Peticov, Emanoel Araújo e outros artistas de renome no mercado.
Também bancou trabalhos de desconhecidos e novatos, em particular da colônia japonesa. Mas os melhores são os que trazem assinaturas já reconhecidas.
Fazer arte num espaço público como as estações de metrô é complicado. O piso é quase sempre de borracha preta; as paredes, de concreto bege manchado; o pé-direito, muito alto; e a iluminação, amarelada e heterogênea.
Em consequência, a maioria das obras tende a sumir no ambiente em vez de se integrar a ele, o que significa que sua presença é flácida –e o pedestre tende a passar por elas com a atenção de quem se desvia de um poste.
Assim, o painel de Tozzi, "Colcha de Retalhos", por exemplo, não é percebido na estação Sé, ainda que seja um mosaico de pastilhas de vidro com padrões e símbolos articulados como se formassem um tecido. O problema deve estar nas cores semimortas.
Os que trazem padrões geométricos também tendem a escapar ao observador mais cuidadoso, porque próximos ao decorativo.
Funcionam melhor os que trazem grandes figuras, em sintaxe mural (à mexicana), como o de Mário Gruber na Sé ou os de cores muito vivas em formas muito definidas, como o de Geraldo de Barros na Clínicas e o de Cícero Dias na Brigadeiro.
Há também a questão do local escolhido. O de Lygia Reinach na Ana Rosa, por exemplo, perdeu o impacto –uma multidão de barro com caras diversas– porque isolado da circulação popular.
Por outro lado, a "Roda" de aço branco de Emanoel Araújo, na Barra Funda, foi posta no sentido do fluxo humano e assim sua dinâmica de planos ganha reforço.
Arte pública, ainda que tentem nos dizer o contrário, continua arte –e, portanto, falível. "Arte no Metrô" comprova.

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