São Paulo, terça-feira, 3 de janeiro de 1995
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Otimismo e tubarões

HÉLIO SCHWARTSMAN

Não sou especialista em nada e sou sério demais para me levar a sério. Talvez seja por isso que me recuso a partilhar da onda de otimismo que arrebentou no país com a posse do presidente Fernando Henrique Cardoso. Não se trata, é óbvio, de torcer contra o governo, mas é a própria prudência, tantas vezes citada como uma das virtudes do atual mandatário, que recomenda que se ande devagar com os bois.
Como o Clóvis Rossi gosta de repetir, em nenhum lugar está escrito que o Brasil é um país que tem de dar certo. Vou mais longe até, a maioria das nações que já passaram sobre este planetinha miserável nunca "deu certo", compreendendo-se este conceito como "sendo capaz de proporcionar uma vida digna a todos os seus habitantes". E não existem razões objetivas para acreditar que o Brasil deva necessariamente entrar na lista de exceções.
Tanto mais porque, para além do inegável salto no padrão da qualidade intelectual e moral da Presidência que a assunção de FHC representa –o raciocínio não pode, infelizmente, ser estendido a todo o ministério–, muito pouca coisa mudou no Brasil.
O PFL (tesconjuro!) continua no poder. Não existe motivo para acreditar que o próximo Congresso será melhor do que a atual legislatura, que se notabilizou, entre outros episódios, pelo escândalo do Orçamento, o fiasco da revisão constitucional, o absenteísmo crônico e a tentativa de anistia a parlamentares cassados pelo uso indevido de dinheiro público. A inflação baixou, é verdade, mas à custa de um truquezinho de fôlego relativamente curto. O México não nos deixa mentir, ou ter ilusões. A questão fiscal não saiu do papel, se é que nele chegou a ser colocada.
Por essas tantas e outras, custa-me crer que agora, como que por determinação divina, o país começará a crescer e distribuir justiça social, fazendo com que entremos no próximo milênio como uma verdadeira potência.
Todos os pré-requisitos para esse passo permanecem em aberto: o Brasil é um país de analfabetos, doenças facilmente curáveis continuam a matar milhares de pessoas, o saneamento básico é um privilégio de muito poucos. O povo, como sempre, assiste a tudo bestificado. E reelege muitos dos responsáveis pelo escândalo em que o país se tornou.
Os gregos criaram o termo "governo" a partir do verbo "kyberno" ("pilotar um barco"), daí a frequência das imagens comparando a nação a um navio e o presidente a um piloto que deve conduzi-la a porto seguro. No caso do Brasil, tal é o estado da nau que, mais do que de um piloto, o país precisa é de um carpinteiro, e dos bons, para remendar todos os inúmeros e perigosos rombos que existem sob o casco.
Fernando Henrique, como é óbvio, sabe disso tudo. Resta descobrir se terá a determinação necessária para descer da elegante ponte para os úmidos porões e, mais importante, se terá a coragem de fazer os amotinados caminhar pela prancha. Não têm faltado tubarões no litoral brasileiro.

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