São Paulo, domingo, 8 de janeiro de 1995
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MP não é instrumento de magia negra

OSIRIS LOPES FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dois passos para frente e um para trás. Essa, a estratégia prudente imprimida por Mao Tse Tung ao desenvolvimento da revolução chinesa neste século.
Lendo a edição da medida provisória nº 812, publicada no "Diário Oficial da União" de sábado, dia 31, fico a imaginar se a tecnoburocracia federal está a adotar o ritmo da marcha chinesa ou inverteu-a: um passo para frente, dois para trás.
Editar uma medida provisória, no dia 31 de dezembro de 1994, contendo 117 artigos e provocando uma alteração profunda no Imposto de Renda, para ter eficácia no dia 1º de janeiro seguinte, em que o país estava em festas pela posse dos novos governantes eleitos representa uma regressão aos piores momentos legisferantes da ditadura militar.
Evidencia, ainda, contradição gritante com o regime democrático, que o povo aspira e a cúpula governante promete nos discursos e programas, mas, no entanto, parece ser incapaz de praticá-lo, no substancial.
Um ministro da Fazenda do passado, quando queria enfatizar a sua confiança em determinado colaborador, afirmava "confiar no seu taco". Sempre tive dúvidas se a declaração era decorrente da habilidade no jogo de sinuca ou se envolvia virtudes sexuais, praticadas ou cantadas nos gabinetes almofadados brasilienses.
O desafio que se apresenta ao governo é administrar o país. Sair do casulo da cúpula governamental de, na calada da noite, tramar as medidas provisórias, para apanhar de surpresa a população.
É preciso fazer a grande reformulação, que é aguardada há muito tempo, e que se espera ocorra antes do início do próximo milênio: a administração pública funcionar efetivamente em favor do povo, prestando os serviços públicos necessários e fazendo cumprir as leis do país, sem mudá-las mercurialmente, por medidas provisórias.
Leis estáveis, com regras sérias e duráveis. Não leis que mudam ao sabor das conveniências, inseguranças e, muitas vezes, prepotência de tecnoburocracia brasileira, que necessita ser reeditada para a convivência democrática, aberta e transparente com a população e as instituições.
Eis a palavra da moda –transparência– muito invocada, pouco praticada. A abertura do debate e dos dados, a claridade, a publicidade, a luz solar a iluminar as coisas impossibilitam as surpresas desagradáveis e a violência da elevação da carga tributária, existente na nefanda medida provisória abordada.
Há evidentes explicações para a sua edição. A perda, no exercício de 1995, dos R$ 5 bilhões arrecadados com o IPMF, que morreu, concomitantemente com o nascimento do monstrengo de 117 artigos para recompor tal perda.
Algum crédulo dirá: "é duro demais chamar a medida provisória de monstrengo". Pode ser. Mas trata-se de algo "déjà vu" no Brasil. Repetição cômica mas, às vezes trágica, de fatos que já deveriam estar proscritos.
No país em que campeia a sonegação, o dever fundamental do governo não é aumentar a carga tributária já insuportável, mas repartí-la conforme o previsto na lei, entre todos, de acordo com a sua capacidade contributiva, fazendo os que se evadem pagar impostos, se o necessário é a obtenção de novos recursos.
Mais uma vez houve a repetição do pior dos regimes autoritários, cujo cordão umbilical é de uma resistência e durabilidade incríveis. Aumentaram-se os impostos em cima de quem já os paga. Deram-se maiores vantagens competitivas aos evasores. Trata-se o contribuinte correto como se ele fosse masoquista, gozando a cada novo golpe na sua carteira.
A carga tributária será aumentada em torno de 5% a 10%, aproximadamente R$ 5 bilhões. Não os R$ 18 bilhões alardeados pelos alarmistas.
Mas o princípio constitucional da anterioridade da lei, que estabelece que a lei que aumente ou crie tributos só terá eficácia no exercício financeiro seguinte, tornou-se um escárnio; uma letra morta da Constituição.
A regra constitucional pode ser apenas uma frase contida na Constituição. A sua validade e eficácia dependem de se considerá-la útil e imperativa. De compreender-se que ela está ali para ser cumprida.
O governo não entende dessa maneira. Faz o seu cumprimento formal, sem imbuir-se do seu espírito de proteção do contribuinte, dando-lhe condições de previsibilidade diante das mudanças, garantindo a segurança jurídica.
A edição de tantas medidas provisórias, já quase 800, tornou-se mais opressiva, pela sua amplitude, do que os decretos-leis. Em mais de 20 anos, os decretos-leis não chegaram a 3.000. Em seis anos, têm-se quase 800 medidas provisórias.
O Congresso Nacional está se transformando em "vaquinhas de presépio" do Executivo. Perdão, vaca de presépio fica imóvel. É melhor biruta de aeroporto, que se anima e ganha sentido quando sopra o vento. E que ventos sopram do Executivo. Vendavais.
A reforma constitucional, se vier a ser feita, que preveja limitações à edição das medidas provisórias. Ou as suprima. O seu âmbito de abrangência, hoje, é demasiado amplo. Intolerável.
E que o PFL apresente a emenda constitucional, gestada há muito tempo por seu presidente, Bornhausen, no sentido de que a lei que crie ou aumente impostos, para ter eficácia no ano seguinte, deve estar sancionada antes de agosto do exercício anterior. Maior proteção ao contribuinte, menor nível de surpresa desagradável.
Quem colocou no poder o governo foi o povo. O mesmo povo que paga religiosa e corretamente os impostos. E que sustenta o governo com tais tributos. E que absorve toda a carga incidente sobre as mercadorias, quando as consome.
O povo espera –e algum dia exigirá– que o governo faça funcionar a administração tributária, cobrando os impostos de todos, inclusive dos evasores que, se tiverem praticado crimes, devem ir para a cadeia. Que o governo administre as finanças públicas, melhorando cada vez mais seus mecanismos de controle e reduza a carga tributária.
O que definitivamente não se quer é que o governo pratique passes de magia negra com o caldeirão da medida provisória.

OSIRIS DE AZEVEDO LOPES FILHO, 55, é professor de Direito Tributário e Financeiro da Universidade de Brasília, advogado e ex-secretário da Receita Federal (governo Itamar Franco).

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