São Paulo, domingo, 8 de janeiro de 1995
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O lirismo do último Camus

MANUEL DA COSTA PINTO
DA REDAÇÃO

Os manuscritos de livros inacabados são como montagens amadoras de um texto clássico, com monólogos e personagens desperdiçados por atores incipientes. Uma obra de arte autêntica, porém, resiste a qualquer precariedade –e O Primeiro Homem, de Albert Camus (1913-1960), é o exemplo de um romance que supera a sombra de seu próprio esboço.
Publicado com enorme sucesso na França, no ano passado, os originais das duas primeiras partes do livro foram encontrados no local do acidente de automóvel que matou Camus há 35 anos, no dia 4 de janeiro.
Para o leitor familiarizado com sua biografia, o que restou de O Primeiro Homem é uma estranha reconstituição da infância por um autor cuja escrita clássica, equilibrada, e por vezes distante, parecia rejeitar o tom confessional.
Embora narrado em terceira pessoa, o romance não dissimula a origem dos fatos que permeiam a vida de sua personagem, o franco-argelino Jacques Cormery.
A infância num bairro pobre de Argel, a figura da mãe analfabeta e semi-surda, a paixão pelo futebol e a adoção intelectual pelo professor do liceu são alguns dos traços que permitem estabelecer um nexo direto entre o enredo da obra e a história pessoal do escritor.
Sobre esse universo de reminiscências, paira o espectro da morte do pai de Cormery –que, como o pai de Camus, morreu lutando na Primeira Guerra.
É nesse ponto de coincidência máxima entre vida e obra, porém, que a leitura de O Primeiro Homem revela o sentido programático do último livro de Camus.
O eixo que articula o romance é a viagem de Cormery, da França para a Argélia, em busca da imagem paterna; mas o retorno ao país de sua infância não pode satisfazer esse impulso melancólico de ressurreição do passado.
A mãe de Cormery, detentora da parte desconhecida de sua história, cultiva um esquecimento voluntário: Só os ricos podem reencontrar o tempo perdido. Para os pobres, o tempo marca apenas os vagos vestígios do caminho da morte, diz o narrador.
Assim, Cormery se vê às voltas com a impossibilidade de estabelecer uma continuidade entre suas recordações interiores e um mundo exterior que é refratário à decantação do tempo.
Isso, somado ao distanciamento proporcionado pela narrativa em terceira pessoa, relativiza o tom autobiográfico de O Primeiro Homem, transformando-o numa espécie de romance de formação.
Camus parece buscar, justamente, a formação de um caráter mediterrânico –que permeia as suas memórias, mas também a confusão étnica dos arrabaldes de Argel, a volúpia natural de suas praias e o orgulho silencioso dos mouros, a indiferença trágica em relação ao destino e um sentido de honra gravados pelo sol africano sobre a fronte dos argelinos.
Em O Primeiro Homem, porém, o olhar lírico do narrador coloca os detalhes desse universo no centro da ação. Na verdade, eles são a própria ação: Cormery evoca em cada imagem de Argel a permanência de uma forma de codificar a realidade e a experiência.
Com isso, o livro revela um viés antropológico, em que a personagem pontua suas lembranças com a descrição das comidas argelinas, das roupas despojadas do colonos, da decoração de suas casas –da força impregnadora de uma cultura que nasce do contato violento entre franceses e árabes.
O lirismo de Camus não pode ser entendido, portanto, como expressão de uma dimensão individual e afetiva. Em O Primeiro Homem, como nos romances épicos que o escritor cultuava (sobretudo os de Dostoiévski e Tolstói), o sujeito absorve toda a realidade, transformando a história em cenário, o narrador em demiurgo.
As várias anotações deixadas por Camus (e publicadas ao final do volume) indicam, aliás, seu projeto de estender a narrativa desde a ocupação da Argélia, no século 19, até os conflitos anti-colonialistas da década de 50.
Como em A Peste, Camus queria pintar um grande afresco de valores extraídos da consciência subjetiva e vazados por constantes oscilações de tempo narrativo, pelos abismos que se interpõem entre o registro factual e a memória.
E, embora faça alusões premonitórias à guerra em que a Argélia mergulharia depois de sua morte, o que esta bela tradução de O Primeiro Homem mostra é que Camus, assim como o outro grande escritor francês do pós-guerra, Louis-Ferdinand Céline, soube justamente diluir a história nas mitologias poéticas do indivíduo.

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