São Paulo, domingo, 8 de janeiro de 1995
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O idiota e a política suicida

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

Nas grandes cidades do mundo, o automóvel particular é, objetivamente, uma máquina obsoleta. Polui, faz barulho e, pior de tudo, não anda. Ou, antes, anda muito devagar.
Para ter uma prova disso, basta observar qualquer grande avenida de São Paulo ou do Rio em qualquer hora do dia, não só na ironicamente chamada "hora do rush". Não é certo dizer que o trânsito é intenso nessa hora, pois não existe trânsito algum: ninguém se mexe.
É para evitar isso –e para garantir um mínimo de qualidade do ar– que as nações civilizadas buscam de todas as maneiras diminuir o número de automóveis em circulação nos centros urbanos.
Em algumas cidades, cada carro particular só sai à rua dia sim, dia não (num dia os de chapa ímpar, no outro os pares). Em outros locais, há pistas exclusivas para os carros com mais de dois ocupantes. Certas cidades simplesmente proíbem o tráfego de veículos em amplas áreas de seu perímetro. Etc. etc. etc.
É evidente que esse tipo de política restritiva é acompanhada de investimentos maciços no transporte coletivo (metrô, ônibus, trens, bondes) e em campanhas de opinião pública que mostram as vantagens daquele sobre a condução individual.
Idiotas motorizados
No Brasil, país que se mostra tão afoito para entrar na "modernidade", ocorre exatamente o contrário. O transporte coletivo é literalmente sucateado, e só se fala em produzir mais carros, importar mais carros, acabar com o ágio dos carros, baixar o imposto dos carros. Em suma: atulhar mais ainda nossas já inabitáveis ruas.
O mais impressionante –e assustador– nessa história é que há uma espécie de aliança nacional em defesa dessa política suicida. Governo e oposição, empresários e metalúrgicos, importadores e usuários: todos unidos em defesa do automóvel, todos caminhando sorridentes e de mãos dadas para o inferno de gases poluentes e ferro-velho em que nossas cidades estão se transformando.
Não há nada mais representativo do imediatismo inconsequente do brasileiro. O cidadão quer o carro do ano, o político quer votos para a próxima eleição, o empresário quer o lucro já. O futuro –das cidades, dos indivíduos, do meio ambiente– que se lixe.
A falta de escrúpulo dos políticos e o egoísmo dos empresários já viraram clichês aos quais sempre se recorre para justificar a burrice e a inação de todos os que não são políticos nem empresários.
Mas a base do culto irracional do automóvel está no "cidadão comum" –seja ele pobre, rico ou de classe média. Aliás, ele é sempre de classe média, pois a classe média no Brasil não é uma condição econômica e social, é um estado de espírito.
A classe média é o horizonte mental do pobre, e o rico é apenas um sujeito de classe média com um pouco mais de dinheiro.
E o classe média brasileiro é, antes de tudo, um idiota motorizado. Seu paradigma é o idiota de classe média paulistano, que como apêndices do automóvel tem ainda um telefone celular no ouvido, um revólver no porta-luvas e um adesivo com mensagem estúpida em inglês de índio no vidro traseiro.
O idiota paulistano de classe média é o que amarga oito horas num congestionamento para passar o réveillon no Guarujá enchendo a cara e jogando lixo na praia.
Caso clínico
É evidente que tamanha estupidez só pode ter raízes em desejos e pulsões inconscientes. É um tema rico para os psicanalistas, que não devem ter deixado de notar o óbvio componente sexual da obsessão automobilística. O idiota motorizado é o que tem uma ereção ao ver um carro zero e costuma dizer que determinada mulher é "uma máquina" ou que tem "duas mil cilindradas".
Os publicitários, pelo menos, nunca deixaram passar batidas essas associações. Um outdoor do mais recente salão do automóvel dizia: "Desfile em que você pode passar a mão nos modelos".
No seu processo de "conquista de espaço", muitas mulheres de classe média assumiram também essa paixão pelo automóvel. Deixaram o antigo papel passivo (as "marias gasolinas" que só queriam circular no banco do passageiro) e assumiram o volante, exigindo sua porção de poder, truculência e burrice.
Claro que essa tara coletiva não atinge só os brasileiros. A diferença é que, nos países civilizados, esse problema universal é relativamente controlado por meio da ação do poder público (como foi citado acima) e do cultivo de outros valores.
Em cidades da Alemanha, empresários vão trabalhar de metrô. Na Holanda e na Suécia, até ministros de Estado usam o transporte coletivo. Já o brasileiro, para ir à padaria da esquina, vai de carro.
Aqui, a doença infantil do automobilismo é incentivada por todo lado. Impedido de amadurecer, o brasileiro é condenado a uma espécie de adolescência permanente.
Idéias arcaicas
Entre os muitos fatores que alimentam a estupidez motorizada, não é pequeno o peso da atuação dos governantes. E, novamente, São Paulo é um caso exemplar.
Cidade com 15 milhões de habitantes em sua área metropolitana, conta com ridículas duas linhas e meia de metrô, contra dez ou 12 em média em cidades européias bem menores (Paris, Berlim, Londres). Se essas cidades começaram seus metrôs mais cedo, era mais um motivo para que São Paulo se apressasse. Mas não. Quantas estações de metrô foram construídas, por exemplo, na recém-encerrada gestão do governador Fleury? Nenhuma, zero, nada.
Mas o exemplo mais cabal do político perfeitamente adequado à tara automobilística é sem dúvida o prefeito Paulo Maluf.
A idéia de administração pública de Maluf está associada a um estilo de governo absolutamente arcaico, o do prefeito "que faz" (leia-se: que "aparece").
Levantar tapumes, abrir avenidas, desfigurar o rosto da cidade, destruir bairros inteiros: esse jeito de administrar a cidade, que fez a fama de prefeitos como Prestes Maia e Faria Lima, é a opção explícita de Maluf.
O slogan de sua gestão não deixa dúvidas: "São Paulo crescendo". Ora, qualquer pessoa medianamente inteligente sabe que a cidade chegou a um ponto em que quanto mais cresce, pior fica. E qualquer político medianamente sério sabe que o que é preciso é melhorar a qualidade de vida de quem mora nesta selva.
Maluf, quanto a isso, fez o quê? Diminuiu a frota de ônibus em circulação, cortou investimentos na saúde e na educação –tudo para poder erguer seus tapumes e colocar mais carros nas ruas. Seu ideal é uma cidade sem casas, só com avenidas, pontes e viadutos. As pessoas são um estorvo para seus planos –a não ser nas eleições.
Mas não cabe crucificar o prefeito. Se ele está onde está, é porque representa a população da cidade, formada em sua maioria por idiotas de classe média motorizados –ricos ou pobres. Eles merecem.

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