São Paulo, domingo, 8 de janeiro de 1995
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A REBELIÃO DAS ELITES

SÉRGIO AUGUSTO; CHRISTOPHER LASCH
DA SUCURSAL DO RIO

Quase um ano depois de sua morte, Christopher Lasch volta a incomodar os bem-pensantes. Sua nova (e póstuma) provocação, como as anteriores, é um torpedo com lombada. Título: "The Revolt of the Elites and the Betrayal of Democracy". Sai dia desses, nos EUA, pela W.W. Norton, e daqui a uns seis meses no Brasil, pela Ediouro, literalmente traduzido: "A Rebelião das Elites e a Traição da Democracia". Um alentado resumo de suas idéias foi publicado na edição de novembro da revista "Harper's" e hoje se submete ao julgamento dos leitores do Mais!. É um ensaio impiedoso, nada populista, contra a atuação das elites na (ou a partir da) América do Norte, com observações e dados que muito nos concerne e ilumina.
Lasch já enriquecera a historiografia de seu país com reveladores estudos sobre a reação dos liberais norte-americanos à revolução bolchevique ("The American Liberals and the Russian Revolution", 1962), sobre as esquerdas ("The New Radicalism in America", 1969, e "The Agony of the American Left", 1977) e sobre o futuro periclitante da família tradicional ("Haven in a Heartless World: The Family Besieged", 1977), quando "A Cultura do Narcisismo" (1979) o fez saltar dos minaretes acadêmicos –e das páginas da revista cultural "Salmagundi"– para os salões do mundo inteiro.
Ao distinguir o narcisista (autocentrado, indiferente ao passado e ao futuro, incapaz de subordinar seus desejos a propósitos sociais mais elevados) como o tipo neurótico predominante em nossa sociedade, Lasch bateu de frente não apenas com os yuppies e outros hedonistas pós-modernos, mas também com sociólogos, psicólogos e futurólogos de variada plumagem ideológica, que o acusaram de subestimar os aspectos supostamente progressistas da cultura de massa, cujos eventuais defeitos seriam um tributo exigido pela democracia.
Liberdade para sermos meros fantoches do consumismo? Não, muito obrigado, reagia Lasch, recauchutando teses destiladas na Escola de Frankfurt e mais tarde consagradas por Herbert Marcuse, a cuja pioneira fusão de Marx com Freud "A Cultura do Nascisismo" e seu adendo crítico, "O Mínimo Eu" (1984), devem o melhor de sua seiva.
O que havia de novo nas teses de Lasch era uma compreensão bem abrangente dos malefícios causados por certas falácias da modernidade, como o crescimento econômico ilimitado, o desenvolvimento tecnológico sem freios e a exploração irresponsável da natureza. À frente de tais flagelos, uma elite hipócrita e egocêntrica, que perdeu a fé em valores fundamentais e se distingue do resto da população não apenas por suas gordas contas bancárias, mas sobretudo por seu modo de vida acintosamente glamouroso, ostentatório e dissipador.
Já não era assim no século em que aquele monarca francês proclamou "Depois de mim, o dilúvio"? Era. Mas as coisas pioraram. Segundo Lasch, os atuais donos do poder têm os vícios da aristocracia, mas não as suas virtudes.
Seu derradeiro ensaio é uma paráfrase de outro, muito lido e citado dos anos 30 aos 50, "A Rebelião das Massas", do espanhol Jose Ortega y Gasset (1883-1955). Escrito numa época de intensa agitação popular nas ruas, com a revolução comunista pelas costas e a ascensão nazista pela frente, o livro de Ortega espelhava uma inquietação a que outros intelectuais, como Hannah Arendt e T.S. Eliot, não conseguiram ficar imunes. As massas estariam tomando conta de tudo, do palco social, do poder político, das artes etc, "impondo suas aspirações e seus desejos por meio de pressão material". Elitista, mas não fascista, é bom que se diga, Ortega sonhava com uma sociedade entregue ao comando dos mais sábios e capazes.
Segundo Lasch, os supostamente mais sábios e capazes afinal tomaram conta da situação e estão estragando tudo. A ameaça, hoje, diz ele, não vem mais do domínio político das massas, e sim daqueles que estão no topo da hierarquia social e controlam o fluxo internacional do dinheiro e da informação, presidem fundações filantrópicas e instituições de ensino, comandam os instrumentos de produção cultural e impõem os termos do debate público.
Eles formam uma casta de privilegiados apátridas, que se identificam mais com os seus similares estrangeiros do que com a maioria dos seus conterrâneos. Oligarcas transnacionais, traíram não apenas os ideais mais legítimos da democracia, mas também os interesses nacionais e comunitários, ampliando em escala global a disparidade entre a riqueza e a pobreza, semeando por toda parte a miséria e o desespero, decretando, enfim, o declínio da classe média e das nações e a degeneração das cidades em vastas e mofinas aglomerações urbanas. Não mandam porque merecem, mas porque tiveram mais oportunidades. A meritocracia é uma paródia da democracia, sublinha Lasch, que prevê "uma guerra de todos contra todos" se a revolta das elites não for sustada a tempo.
Saiamos de baixo. Ou melhor, de cima.

CHRISTOPHER LASCH
Quando José Ortega y Gasset publicou "A Rebelião das Massas", em 1930, não poderia ter previsto uma época em que seria mais apropriado falar de uma rebelião das elites. Escrevendo na era da revolução bolchevique e da ascensão do fascismo, na derrocada de uma guerra cataclísmica que arrasou a Europa, Ortega atribuiu a crise da cultura ocidental à "dominação política das massas".
Em nossa época, entretanto, a principal ameaça parece vir não das massas, mas daqueles que estão no topo da hierarquia social, as elites que controlam o fluxo internacional de dinheiro e informação, comandam fundações filantrópicas e instituições de nível superior, administram os instrumentos de produção cultural e determinam, por conseguinte, as condições do debate público.
Os membros da elite perderam a fé nos valores –ou no que restou deles– do Ocidente. Para muitas pessoas, a própria expressão "civilização ocidental" faz lembrar um sistema organizado de dominação, projetado para reforçar a submissão aos valores burgueses e para manter as vítimas da opressão patriarcal –mulheres, crianças, homossexuais, pessoas de cor– em permanente estado de sujeição. Numa notável reviravolta dos fatos, que confunde nossas expectativas quanto ao curso da história, aconteceu algo com que Ortega nunca sonhou: a rebelião das elites.
O homem da massa, por outro lado, não estava acostumado a obrigações, não compreendia as implicações das mesmas nem tinha "qualquer sensibilidade para com os grandes deveres históricos". Pelo contrário, ele reivindicava os "direitos do lugar-comum". Ao mesmo tempo ressentido e arrogante, rejeitava "tudo o que é superior, individual, qualificado e seleto".
Desprovido de qualquer compreensão a respeito da fragilidade da civilização ou do caráter trágico da história, ele só estava preocupado com seu próprio bem-estar e aguardava ansiosamente por um futuro de "possibilidades ilimitadas" e "liberdade completa".
Entre suas muitas falhas estava a "falta de romantismo no trato com as mulheres". O amor erótico, modelo ideal exigente por si só, não exercia qualquer atração sobre ele. Sua atitude para com o corpo era rigorosamente prática: ele cultuava a aptidão física e se submetia a regimes higiênicos que prometessem mantê-lo em boa forma e prolongar sua longevidade.
Acima de tudo, entretanto, era o "ódio mortal a todas as coisas que não fossem elas mesmas" que caracterizava a mentalidade da massa, segundo Ortega a descreveu. Incapaz de estranhamento ou respeito, o homem da massa era a "criança mimada da história da humanidade". O homem da massa, segundo Ortega, tomaria como garantidos os benefícios conferidos pela civilização, exigindo-os "peremptoriamente como se fossem direitos naturais".
Embora ele desfrutasse das vantagens decorrentes da "melhoria" geral do "nível histórico", não sentiria qualquer obrigação nem para com seus progenitores nem para com sua progênie. Sua "incrível ignorância da história" permitia-lhe julgar o momento presente como muito superior às civilizações do passado e esquecer, ademais, que a civilização contemporânea era, em si, um produto de séculos de desenvolvimento histórico, e não a conquista singular de uma época que teria descoberto o segredo do progresso ao voltar suas costas para o passado.
Todo o feitio mental que Ortega atribuía às massas é agora, a meu ver, mais característico dos níveis mais altos da sociedade do que dos níveis médios ou mais baixos. Dificilmente se pode dizer que as classes populares de hoje aguardam ansiosamente por um mundo de "possibilidades ilimitadas". Qualquer impressão de que as massas estão sendo carregadas pela história está há tempos extinta.
Os movimentos radicais que perturbaram a paz do século 20 falharam um a um, e não surgiram sucessores no horizonte. A classe trabalhadora industrial, antes esteio do movimento socialista, transformou-se em deplorável remanescente de si mesma.
A esperança de que "novos movimentos sociais" tomariam seu lugar na luta contra o capitalismo –que por pouco tempo sustentou a esquerda no fim dos anos 70 e início dos 80– deu em nada. Não se trata apenas de que os novos movimentos sociais –feminismo, direitos dos gays, direitos sociais, movimentos contra a discriminação racial– não têm nada em comum; trata-se também de que sua única exigência coerente visa antes a inclusão nas estruturas dominantes do que a transformação revolucionária das relações sociais.
As massas de hoje perderam o interesse pela revolução. Na realidade, seus instintos políticos são comprovadamente mais conservadores do que os de seus autodesignados porta-vozes e pseudolibertadores.

(*) Texto adaptado do livro "The Revolt of the Elites and the Betrayal of Democracy", de Christopher Lasch. Copyright 1995 de Christopher Lasch. Publicado com a permissão do editor, W.W. Norton & Company Ltda.
Continua à pág. 6-5

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