São Paulo, sexta-feira, 13 de janeiro de 1995
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O Senado conservador

RENATO JANINE RIBEIRO

O professor Roberto Romano criticou nesta página os senadores relapsos da semana passada, delicadamente resguardando a instituição do Senado, que elogiou como guardião da Federação ("Senadores inimigos da pátria", 8/01). Com toda a solidariedade que sinto por meu colega de filosofia, especialmente ante o processo que sofre por expressar sua indignação com as ações de um parlamentar, tenho que discordar de sua defesa da Câmara Alta.
O Senado não é tanto, no mundo moderno, o guardião da autonomia dos Estados ou regiões. Desponta, antes de mais nada, como órgão conservador; Napoleão, por exemplo, deu-lhe em 1800 o nome de "Sénat conservateur" (Constituição do Ano VIII), querendo dizer que lhe cabia conservar as instituições e as leis fundamentais. O perigo do qual cabia defendê-las eram as massas, especialmente quando se exprimiam na Câmara Baixa, de deputados.
O problema no século 19 era impedir que uma ampla maioria de opositores ao regime vigente (leia-se: a esquerda –republicana, democrática ou proletária) se valesse de sua vitória eleitoral para efetuar uma revolução pelas vias legais.
E a solução esteve em garantir um órgão também legislativo, mas formado de membros hereditários ou pelo menos –quando se foi tornando ilegítimo o poder baseado no sangue ou no bel-prazer dos reis– eleitos para um mandato longo, por um colégio eleitoral restrito e tendo em geral idade mais avançada.
É esta a essência do Senado, até mesmo enquanto câmara revisora: conter os chamados excessos da voz popular, das classes perigosas, que por seu número e excitação poderiam fugir à calma razão. Sucede, porém, que os pais fundadores da Constituição norte-americana, com raro tino, aproveitaram esse órgão conservador para dar-lhe nova –e afirmemos mais nobre– função. Foi esta a de equilibrar os Estados.
Contudo, isto valeu num país que, desde o início, teve bem claro o fato de se constituir mediante a união de partes preexistentes –as 13 colônias inglesas da América do Norte–, e onde o ideal de autogoverno ("self-government") sempre esteve forte. O mesmo vale, talvez, para países como a Alemanha, a Espanha ou a Itália, em que as regiões têm forte tradição de autonomia ou mesmo independência.
Mas não dá para inferir daí uma oposição entre o federalismo e as aventuras autoritárias e totalitárias, como se os inimigos daquele fossem, necessariamente, nacionalistas ou imperialistas. Vários regimes europeus são unitários, porém democráticos, como o Reino Unido. Isso embora eu concorde inteiramente com Roberto Romano em que a democracia pode e deve tender à descentralização.
Porque nem toda federalização é tão democrática: veja-se a que ora se promove na parte mais rica da Europa, com a União Européia. É um processo de cima para baixo, algo bismarckiano, substituída a antiga última razão dos reis (os canhões prussianos) pela moderna razão decisiva, a do capital.
Os órgãos eleitos, como o Parlamento Europeu, pesam pouco em comparação com os ministros da Economia reunidos em Bruxelas. O mérito da federação européia não está na democracia, mas em instituir um espaço de paz num mundo em que tão perto –Bósnia, Tchetchênia– grassa a guerra.
Com tudo isso, é provável que os defeitos do Senado brasileiro não se devam à má escolha dos representantes dos Estados, mas sim de ser ele um modelo conservador, que além disso não se casa bem com as tradições de um país em que a autonomia mais significativa foi, do Governo Geral às Regências, a dos municípios e não a das regiões que hoje se chamam Estados.
Assim, o defeito será mais estrutural do que afirma o professor –até porque, espantosamente, no Brasil a Câmara Alta tem mais poderes que a Baixa, deixando de ser revisora para ter quase o primado no Congresso.
Como resolver o problema? A Alemanha tem um modelo bastante bom. Seu Senado, o Bundesrat (ou "Conselho Federal"), é um órgão revisor das decisões da Câmara Baixa, ou Bundestag. Somente esta última, eleita pelo voto popular, escolhe e destitui o chanceler, chefe do Poder Executivo. A representação igual dos cidadãos prepondera sobre a dos Estados.
Ao Senado alemão, porém, cabe poderes específicos. Basicamente, revisa as leis votadas na Câmara, se atentarem contra os direitos ou interesses dos Estados. E, para isso, dispõe de uma representação menos desigual que a Câmara (mas os Estados maiores têm mais votos), e que é formada do primeiro-ministro de cada Estado e de número variado de seus colaboradores.
Em termos brasileiros, seria um colegiado de governadores e assessores, mais forte, pois, do que o atual colégio de políticos que, muitas vezes, pouco têm a ver com o poder em seus Estados. Isso também criaria um canal eficaz para se manifestar uma política de governadores que não precise mais manipular deputados.
Mas, seja como for, talvez a chave para resolver alguns de nossos problemas, como a má qualidade dos senadores e as ameaças à Federação, esteja em repensar a forma como o caráter federal da República se manifesta, retirando a deformação que impõe à Câmara (o mínimo de oito e o máximo de 70 deputados por unidade) e abrindo um canal institucional claro para os poderes estaduais fazerem ouvir sua voz na política nacional.

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