São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 1995
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A POESIA QUE DIZ SEU NOME

NELSON ASCHER
ESPECIAL PARA A FOLHA

A musa homossexual masculina é tão antiga e respeitável quanto a própria poesia ocidental. Cerca de quatro mil anos atrás, numa epopéia suméria, Gilgamesh já lamentava de forma suspeitosa a morte de seu amigo Enkidu. A dor de Aquiles diante do cadáver de Pátroclos (há quase três mil anos, na "Ilíada") é inequívoca. Não se tratava de uma amizade qualquer. Quanto aos poetas latinos, embora não se interessassem preferencialmente por garotos, tampouco parece que os desdenhassem. No mundo clássico, o tema só se tornaria tabu com a vitória do cristianismo.
O crucifixo expulsou o "amor grego" enquanto assunto nobre para a poesia por um milênio e meio, mas, como motivo de calúnia, ele passou a ser utilizado ainda mais intensamente. Norman Cohn lembra que a sodomia pesou como uma das mais graves acusações no processo forjado por Felipe, o Belo contra a Ordem dos Templários.
Não é segredo que no século 19 começa a ocorrer no Ocidente uma liberalização gradual dos costumes. Ela decorre diretamente do enfraquecimento da autoridade religiosa. Quando um número cada vez maior de pessoas resolve negar aos poderes eclesiásticos o direito de legislar sobre sua vida privada, um dos resultados quase imediatos é o aparecimento de autores assumidamente homossexuais, principiando, pelo menos, com o rumoroso caso de Rimbaud e Verlaine, prosseguindo com a fama de Walt Whitman e culminando no julgamento de Oscar Wilde, o primeiro mártir moderno –involuntário, é verdade– dessa causa específica.
Essa história toda já foi contada e recontada, mas o que ainda não foi suficientemente enfatizado é que a importância dos homossexuais masculinos para a poesia moderna neste último século e meio talvez supere a das mulheres. Embora nunca antes –exceto, quem sabe, no período Heian do Japão, em torno do ano 1.000– as mulheres tenham escrito tanta grande poesia quanto no nosso tempo –Marina Tzvietáieva, Anna Akhmátova, Marianne Moore, Elizabeth Bishop, DH (Hilda Doolittle), Else Lasker Schuller, Nelly Sachs, Ingeborg Bachmann são apenas alguns exemplos–, os homossexuais escreveram ainda mais: Constantinos Kaváfis, Federico García Lorca, Wystan Hugh Auden, Luis Cernuda, José Lezama Lima e, há quem o diga, Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Vicente Aleixandre, Bertolt Brecht (segundo sua mais recente biografia) etc.
Muitas livrarias norte-americanas e londrinas têm seções denominadas de "gay and lesbian interest". Se bem que poesia homossexual e poesia escrita por homossexuais não coincidam obrigatoriamente, a indústria editorial e a acadêmica não podem parar. E, quando o lucro se contrapõe ao preconceito, pior para este último –o que prova que existe muito de liberador na vilipendiada racionalidade burguesa.
A verdade, contudo, é que o grosso do que há nessas seções –como o que está nas seções femininas– só interessa aos previamente interessados e destina-se ao entendimento exclusivo dos entendidos. Numa das esferas centrais para a poesia –o amor, o sexo ou o erotismo– os homossexuais de ambos os sexos possuem interesses nem sempre compartilháveis com os heterossexuais.
Há nisso um grau de incomunicabilidade semelhante ao que existe entre os fãs de dois esportes distintos como o beisebol e o futebol. A maior parte da poesia homossexual nada diz aos heteros –e isso não necessariamente por preconceito.
A única maneira que existe de transpor as barreiras habituais de opção ou preferência é nada mais nada menos que a qualidade estética. Cabe tanto a um hetero letrado se interessar pelos garotos de Kaváfis (de quem a Nova Fronteira editou uma antologia, traduzida por José Paulo Paes) quanto a um gay culto apreciar as mulheres de Vinicius de Moraes. Pois o jogo não é mais o amor ou a poesia hetero ou homossexual, e sim a poesia onde, acima de um determinado nível de realização, o sexo do autor ou de sua musa é secundário.
Secundário, mas não irrelevante: muito pelo contrário, como atesta essa antologia de poetas homossexuais contemporâneos editada no Mais!. A grande poesia, como a grande literatura, é que dão verdadeiro acesso, mais que um contato superficial, ao que há de mais profundamente emaranhado na intimidade do autor. É, portanto, quando há poesia de primeira que podemos saber do erotismo, do amor ou da sexualidade para além de uma mera afirmação programática.
Se, por um lado, a qualidade desloca para segundo plano o caráter da opção sexual, por outro, ele a ilumina com uma luz mais concentrada e intensa. Isto torna indispensável o esforço de percorrer os meandros dessa opção. Em outras palavras, quem quiser apreciar de fato os grandes poetas que além disso eram homossexuais terá que compreender também o próprio homossexualismo.
Assim, a excelência destes poetas torna não só possível como necessário o rompimento desta barreira de incomunicabilidade entre homos e heteros, o que só pode levar afinal a uma melhor intelecção da poesia e, portanto, do humano.

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