São Paulo, quarta-feira, 18 de janeiro de 1995
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Autor reabilita prática literária do devaneio

PIERRE LEPAPE
DO "LE MONDE"

Os romances de Milan Kundera têm, entre outras particularidades, a de anunciar frequentemente, a partir de seus títulos, o território principal, a categoria existencial maior que eles vão explorar: "A Brincadeira", "O Livro do Riso e do Esquecimento", "A Insustentável Leveza do Ser", "A Imortalidade". É também um modo de lembrar que, se o romance não é um trabalho de idéias, é uma obra de conhecimento.
"A Lentidão" é, portanto, uma composição romanesca organizada em torno de um tema dominante, cuja linha é exposta na primeira das 51 sequências do livro: "Por que o prazer da lentidão desapareceu?" Por que o homem da idade moderna foi privado –ou se privou– de uma forma de felicidade, até o ponto de não lhe restar nem mesmo o sentimento de que ela possa ter existido?
O que isso que dizer a nosso respeito? Filósofos, historiadores, sociólogos, antropólogos propõem respostas a esta questão. Eles dissertam, discutem, argumentam a respeito da era da velocidade à qual pertencemos. Eles analisam, criam conceitos, lustram equações, elaboram leis. Eles são eficazes, como a época exige. Tratando da lentidão, eles o fazem com os instrumentos da era da velocidade.
A literatura não tem estas obrigações: ela tem todo o tempo. Ser escritor é uma das últimas profissões na qual não é proibido flanar, na qual o devaneio é recomendado, na qual as quimeras não são incômodas loucuras, mas preciosas auxiliares. É por isso que os escritores –ou os poetas– podem esclarecer o enigma da lentidão como nenhuma outra pessoa poderia fazer.
A primeira sequência de "A Lentidão" é escrita na primeira pessoa do singular. Logo ficamos sabendo que este "eu" se chama Milan, que sua mulher se chama Véra e que Milan é escritor. Eles decidiram passar a noite num castelo. Na estrada que leva até lá, Milan e Véra discutem a lentidão e a velocidade, como qualquer um de nós poderia fazer: "A lentidão é a forma de êxtase com a qual a revolução técnica presentou o homem", declara Milan.
Um pouco mais tarde, o mesmo Milan, que ama os aforismas e a "matemática existencial", dirá que "há um laço secreto entre a lentidão e a memória, entre a velocidade e o esquecimento.(...) O grau da lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória; o grau da velocidade é diretamente proporcional à intensidade do esquecimento".
Milan disserta alegremente. O erro seria acreditar que "A Lentidão" é uma ilustração de suas reflexões (apenas) teóricas. Trata-se exatamente do contrário: escolhendo a si mesmo como personagem de seu romance, o autor proclama que ele é apenas uma voz no concerto, uma linha na polifonia. O que ele diz, pensa, decide fazer ou deixar de fazer não tem mais status de verdade do que dizem, pensam e fazem as outras vozes, os outros personagens.
Kundera consegue unir sete tramas e conservar uma aparência de grande liberdade, de negligência brincalhona e irônica. Em algumas linhas e sem sobressaltos, desliza-se da metafísica à trivialidade, da emoção ao riso, da ternura ao sarcasmo, do século 18 ao 20, da tragédia ao vaudeville.
O romance de Kundera é também, à maneira de "O Sobrinho de Rameau", do qual ele guarda as aparências de pantomina, um surpreendente exercício de polêmica moral e estética.
Não que Kundera oponha suas idéias às de ideólogos de shows televisivos, filósofos de estrada e vedetes da "Atualidade Histórica Planetar Sublime".
Não se opõem idéias a gesticulações. A elas se opõem a verve da criação, o segredo da elaboração artística, os poderes da imaginação e mesmo, por que não, a mansidão da piedade.
"Ser dançarino não é somente uma paixão, é também uma estrada da qual não se pode mais afastar." Ou seja, uma rotina fatal. "A Lentidão" é uma contribuição preciosa à higiene das letras –e, portanto, à moral pública.
"A Lentidão" não é um romance sério, é uma brincadeira : uma obra que procura, pelo prazer e para o prazer, reencontrar o segredo do prazer, em vias de se perder no peso sério das tagarelices. "Dom Quixote" também era uma brincadeira.

Tradução de Cássio Starling Carlos

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