São Paulo, quarta-feira, 18 de janeiro de 1995
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Freitas Filho mostra o avesso do lirismo

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Sexta-feira passada fiz um artigo tratando um pouco da violência no Rio e disse que essa violência encontrava um poeta capaz de exprimi-la: trata-se de Armando Freitas Filho, cujo livro "Números Anônimos" acaba de ser publicado pela Nova Fronteira.
Mas é uma tentação fácil identificar os poemas de Armando Freitas Filho à conjuntura imediata de assaltos, tráficos, sequestros. Poeta da violência, poeta dos verões intermináveis e insuportáveis do Rio, o autor de "Números Anônimos" é acima de tudo um poeta difícil, duro de ler.
Faço, aqui, um esforço de interpretação. Vejo três dificuldades básicas na poesia deste autor.
A poesia moderna usa e abusa do "enjambement", ou seja, do corte que acontece no sentido de um verso quando esse sentido passa para a linha seguinte. Por exemplo: Armando Freitas Filho, no primeiro poema de seu livro, fala de um "céu inútil, dias" –e aqui o verso se interrompe, continuando na linha seguinte– "que não andam".
Essa pausa, esse susto, é o "enjambement". Drummond sabia usá-lo maravilhosamente. Sobre a morte de Mário de Andrade, Drummond escreve:
"Súbito a barba deixou de crescer. Telegramas
irrompem. Telefones
retinem. Silêncio
em Lopes Chaves."
(Lopes Chaves era a rua em que morava Mário de Andrade).
Trata-se, enfim, de uma estratégia de corte, de interrupção. O sentido do verso é quebrado, o ritmo "natural" da frase é partido em dois.
Na poesia de Armando Freitas Filho, o uso do "enjambement" se radicaliza. Citei, de seu livro "Números Anônimos", um "enjambement" clássico:
"... céu inútil, dias
que não andam..."
Mas Armando é um poeta mais difícil, mais brusco do que isso. Seu ritmo é mais duro, mais breve, mais violento do que lhe permitiria o uso clássico do "enjambement". Estamos às voltas, portanto, com um uso radical, não-clássico, desta modalidade de versificação.
Repito o exemplo:
"... céu inútil, dias
que não andam..."
Até agora, um "enjambement" clássico, por assim dizer. Mas veja-se como o verso continua:
"que não andam, previsíveis Sol e
Lua, nuvens, vento que não arrebata
(anterior à bandeira), ar
que articula anônimo sem o chão
Uma ária..."
E assim por diante.
O "enjambement" se torna, assim, uma espécie de sistema rítmico: a "quebra" do verso termina por anular a própria melodia do verso, erige-se em forma áspera, em "dificuldade" de leitura.
À dificuldade rítmica, somam-se outras duas. Há, por assim dizer, uma espécie de dificuldade lírica: o poeta não se confessa; procura uma coisa mais árdua, que é mimetizar, encenar a cada poema suas próprias angústias.
A terceira dificuldade é a da alusão particular.
Muitos de seus poemas têm uma "chave" que só os amigos conhecem. Assim, em "Números Anônimos", há um poema (pág. 61) que, dedicado "a Laura", fala de "Gritos por dentro", de "arrepiadíssimos despenhadeiros". Como saber que este poema se refere às esculturas verticais em riste, a pique, da artista plástica Laura Vinci?
Estamos tratando, portanto, de um poeta dificílimo. Melhor dizer: de um poeta ameaçado. Que, na própria obscuridade, encontra um modo de sobreviver.
O caso de Armando Freitas Filho inspira algumas considerações sobre a poesia atual. Que ele faça uso tão forte da alusão, da referência particular, é sintoma da exiguidade de público. Num tempo em que havia leitores para poesia, os poetas não precisavam ser tão difíceis. Tornaram-se difíceis na medida em que se reduziram seus leitores.
Some-se a isto outra circunstância: o lirismo, a confissão pessoal foram negados pelo modernismo literário. Melodia e lágrimas acabaram com Lamartine. Tratou-se de fazer, mais e mais, uma poesia "instantânea", brusca, avessa a contemplações e êxtases.
"Números Anônimos" realiza, a partir do próprio título, essa anulação do "eu" poético. O ritmo violento dos versos –que contrasta com a idéia de um tempo imutável, de um verão sempre presente– contribui para a dureza, mais do que estética, ética no autor.
Autor, como já disse, engraçado, vivendo em arestas, beiras, limites, litorais. Sua poesia se faz numa fímbria do sentido; seu verso se esgueira entre as batidas de uma cidade bárbara; entre os ritmos constantes do mar e a confusão abrupta do morro.
Será possível ser poeta em tal circunstância? Armando Freitas Filho prova que sim; mas só pode ser poeta no avesso do lírico, ao avesso do verso. Vale a pena ler seu livro. Mas dói.

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