São Paulo, quinta-feira, 19 de janeiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Visitar o Uruguai é programa para 'gaucho'

DAVID DREW ZINGG
EM MONTEVIDÉU

Décimo-quinto dia do ano novo nesta grande cidade pequena. Estamos em pleno verão e os novos-ricos argentinos foram todos para a capital mundial do consumo ostensivo, Punta del Este.
Consequentemente, Montevidéu está livre de agito e confusão. Todas as Jennifers bonitinhas estão na praia procurando namorados argentinos ricos, já que a capital uruguaia sofre de um grave desequilíbrio entre homens e mulheres. Os homens uruguaios, como seus colegas brasileiros de Governador Valadares, costumam por o pé na estrada, a caminho das possibilidades tentadoras e ilegais que o futuro lhes reserva em paraísos da Gringolândia tipo Nova York e Boston.
Isso deixa Montevidéu, uma cidade que tem o tamanho aproximado de Curitiba, aberta para tio Dave explorar.
A cidade se divide em duas partes –o setor velho e o setor muito velho. Meus lugares prediletos para caminhadas são as ruas quase desertas da "Ciudad Vieja". Este paraíso ermo é o sonho de um curador de museu, de edifícios conservados do século 19 e ainda mais antigos. É como o centro do Rio de Janeiro seria hoje, se os vândalos não tivessem derrubado a maioria dos prédios originais em nome do progresso.
O centrão do Rio e a "Ciudad Vieja" de Montevidéu eram impressões arquitetônicas de Londres, Roma e Paris, traduzidas para o Novo Mundo. Eram sonhos delirantes da potencial riqueza da terra nova, traduzidos em palácios de aço e pedra.
Passear tranquilamente pelas avenidas quase vazias provoca arrepios atávicos na espinha. O Teatro da Ópera de Manaus teve seus equivalentes, igualmente loucos e grandiosos, erigidos em outras capitais pela América do Sul afora.
Mas a "Ciudad Vieja" nem sempre foi tão romanticamente atraente. Em 1807, antes de tornar-se o ponto focal do dinheiro ganho com a navegação e de todo o agito social consequente, o visitante britânico esnobe não achava os passeios pela "Ciudad Vieja" exatamente atraentes.
Ele fazia anotações sobre os perigos de se fazer caminhadas noturnas pela cidade: "Por ruas longas e estreitas, tão infestadas de ratos vorazes que às vezes se torna perigoso enfrentá-los. Em torno das vísceras de animais abatidos acumulavam-se montes de carniça, frutas e verduras estragadas, e os ratos se reuniam em hordas. Se eu tentasse passar perto daqueles assustadores saqueadores ou interromper suas orgias, eles rilhavam os dentes para mim, com lobos noturnos. Tão longe estavam de fugirem, assustados, para suas numerosas tocas, que se voltavam, soltavam gritos audazes e atacavam minhas pernas de um modo que fazia meu sangue gelar".
Os 200 anos, mais ou menos, passados desde então trouxeram à "Ciudad Vieja" algumas transformações incipientes.
Finalmente os podres poderes estão incentivando projetos de restauração, para salvar alguns daqueles prédios antigos e gloriosos da decadência terminal. Finalmente um homem esfomeado pode comer o que um bom "gaucho" uruguaio provavelmente vê como sendo comida para gays (para os uruguaios e argentinos "gaucho", sem acento, significa "habitante dos pampas uruguaios ou argentinos"). Um restaurante francês muito cool foi aberto num prédio antigo modernizado perto da Praça Matriz. Seu nome é "Olivier", com um chef francês jovem e excelente do mesmo nome.
E se você acha isso efeminado demais, Joãozinho, sempre te resta a opção de fortalecer tuas reservas de gordura e proteína animal, consumindo uma das famosas "parrilladas" uruguaias no prédio do mercado velho, situado na área portuária da "Ciudad Vieja".
A "parrilada" é o churrasco local, e inclui tudo que uma pobre vaca tem a oferecer a uma nação agradecida. O prato inclui uma subdivisão alimentar conhecida, entre os especialistas locais, como "anchuras". Estas são, na realidade, as vísceras, e entre elas figuram quitutes "gauchos" como as "chinchulines" (intestinos delgados), tripa gorda ou "chotas" (o intestino grosso), "ubre" (ubre mesmo), "rinones" (rins) e em último lugar, mas certamente não menos importante, a "molleja" (os bons e velhos miolos).
Posso ouvir você, Joãozinho, lambendo os beiços, antecipando o prazer de saborear teu primeiro prato de "anchuras".
Será que existe algo mais divertido do que um churrasco uruguaio? Sem fazer muito esforço, tio Dave consegue pensar em várias possibilidades, tipo assistir ao ex-governador Fleury cair num barril de água não tratada do rio Tietê em pleno Fantástico. Mas isso não ajudaria a reputação internacional do Brasil, portanto acho que teremos que nos contentar com o churrasco no mercado do cais do porto de Montevidéu.
Hoje em dia, a maioria das pessoas come seus churrascos em unidades menores chamadas "hambúrgueres" ou "cachorros quentes", em vez de tentar comer a vaca inteira, como se faz no Uruguai ou no Rio Grande do Sul.
Hoje em dia, as pessoas raramente colocam vacas inteiras para assar no espeto, exceto no sul da América do Sul, onde levantar animais é uma atividade cultural de primeira grandeza, perdendo em importância apenas para o usar curiosos chapéus de caubóis "gauchos".

Tradução de Clara Allain

Texto Anterior: Diretora tcheca Jana Bokova faz retrato musical do Rio de Janeiro
Próximo Texto: Smoking atravessa temporadas e vira item fashion feminino
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.