São Paulo, quinta-feira, 19 de janeiro de 1995
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O crime legal

O absurdo projeto de lei que concede anistia a parlamentares que tenham feito uso irregular da gráfica do Senado soma à excrescência um acinte.
Um cidadão comum que seja flagrado cometendo alguma irregularidade ou admite o erro e paga pelo que fez ou então, se acha que não errou, discute o caso no foro apropriado, a Justiça, que terá a palavra final. O presidente do Congresso, senador Humberto Lucena, o mais notório beneficiado com o projeto, escolheu a segunda via, mas foi além, muito além.
Mesmo depois de ter esgotado todos os recursos jurídicos possíveis, incluindo o Supremo Tribunal Federal, a corte máxima do país, e ainda assim não ter conseguido reverter a decisão que o tornou inelegível por ter impresso material de campanha na gráfica do Senado, o persistente Lucena não desistiu. Ele resolveu apelar a seus pares para simplesmente mudar a lei, e retroativamente. Pior ainda, a lei com base na qual o senador foi condenado foi criada pela mesma legislatura que agora quer alterá-la.
É evidente que Lucena não é o único interessado na anistia. Cerca de duas dezenas de parlamentares estão sendo investigados ou processados pela Justiça Eleitoral pelo mesmo motivo que levou à cassação de Lucena. Alguns chegaram a ressarcir a gráfica preventivamente, em cínica admissão de culpa. Não poderia haver exemplo melhor para ilustrar o significado da expressão "legislar em causa própria".
A alegação de que a pena imposta é desproporcional ao delito cometido também soa pueril. Se usar recursos públicos para financiar uma campanha privada não é um crime que tenha de ser punido, no mínimo, com a inelegibilidade do candidato, então o assalto à mão armada deveria ser uma mera contravenção penal. E, de qualquer forma, se os parlamentares, acham a pena desproporcional, por que a criaram? Provavelmente confiaram na tradição de impunidade e julgaram que ela jamais seria aplicada.
O que importa é que esse atentado violento à moralidade pública tem de ser freado. Seja pelo próprio Congresso, a saída mais digna e mais improvável, seja pelo veto presidencial. Do contrário, se estará legalizando um crime.

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