São Paulo, sexta-feira, 20 de janeiro de 1995
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'Frankenstein' troca poesia por horror

O filme de Kenneth Branagh estréia hoje no Brasil

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Filme: Frankenstein de Mary Shelley
Direção: Kenneth Branagh
Elenco: Kenneth Branagh, Robert De Niro, Helena Bonham Carter
Onde: Gazeta, Eldorado 2, West Plaza 2, Center 3 e circuito

Os monstros pareciam estar de volta em embalagem de luxo –Jack Nicholson de lobisomem, Tom Cruise de vampiro, Robert De Niro de Frankenstein– quando, de repente, a onda mixou. Primeira consequência: a múmia terá de aguardar melhores dias para ressuscitar, sob as bandagens de... que tal Sylvester Stallone?
A onda mixou porque os filmes não renderam o que deles se esperava. Artisticamente, então, nem se fala. "Lobo" (Wolf), de Mike Nichols, até que começava bem. "Entrevista com o Vampiro", de Neil Jordan, nem isso.
"Frankenstein", de Kenneth Branagh, que hoje entra em cartaz em circuito nacional, só tem de bom (ou apenas louvável) o respeito ao romance de Mary Shelley (1797-1851). O que não chega a ser um indulto, nem sequer uma novidade para quem viu as quatro horas de "Frankenstein: The True Story", telefilme dirigido por Jack Smight com base numa adaptação de Chistopher Isherwood, exibido na televisão americana 22 anos atrás.
As três primeiras adaptações cinematográficas também podem ter sido fiéis ao original, pois só depois de 1930 que o cinema adotou como modelo a compacta versão teatral de Peggy Webling, sem qualquer menção à ida do dr. Victor Frankenstein ao Ártico. Foi nela que o inglês James Whale se inspirou para o clássico que lançou ao estrelato Boris Karloff e consagrou Jack Pierce como um gênio da maquiagem.
Apesar de infiel ao romance, Whale fez do horror poesia. Seu conterrâneo Kenneth Branagh fez do horror apenas um horror. O que não seria de todo mau se a gente conseguisse conter o riso nas cenas supostamente horripilantes.
Depois do tédio, o riso é a reação que o histérico, sanguinolento e afetado filme de Branagh provoca com mais frequência nos espectadores com um mínimo de discernimento e senso de ridículo. Sua infecciosa grandiloquência é um vislumbre do que nos espera se algum dia Oliver Stone também aderir ao grand guignol. De músico para compor a trilha sonora ele já dispõe: Patrick Doyle, cujos arroubos estridentes fazem Wagner parecer Chopin.
Até nas pausas de suas falas Branagh exagera. Sua apresentação ao capitão Robert Walton (Aidan Quinn) é um acinte de pomposidade dramática. Dá para mascar quase dois Mentex enquanto ele se identifica: "Meu nome... é... Victor... Frankenstein". O que se ouve em seguida daria uns três pontos na escala Richter.
E a tragédia tem início, com o monstro e seu criador à beira de um duelo no coração das trevas polares. Das entranhas glaciais ressoa um rugido digno de outro colosso ártico, o congelado ET de "The Thing". Mas o que sucede nem de longe se compara às modestas virtudes da ficção científica de Christian Nyby & Howard Hawks.
A "Coisa" de Branagh não veio do espaço, nem sobreviveu às custas da criogenia. É de fabricação européia e mais parece um Nosferatu atropelado. Ou, então, Travis Bickle (o motorista de "Taxi Driver") depois de operado pelo cirurgião plástico mais incompetente e sem recursos do planeta.
Sem aquele ar sonambúlico que Karloff impôs ao personagem, o Frankenstein de De Niro apresenta outra novidade: filosofa sobre sua condição desumana como o Marlon Brando de "Apocalipse Now". Branagh não se faz de rogado e até imita o clima do momentoso encontro de Brando com Martin Sheen. Pouco antes imitara a labiríntica perseguição de Orson Welles a Rita Hayworth e Everett Sloane no final de "A Dama de Xangai".
Como seu protagonista, "Frankenstein" é um "patchwork" de vários filmes. O mais saliente de todos, por incrível que pareça, é "A Noviça Rebelde". Cheguei a temer, em dois interlúdios alpinos, que Branagh fosse cantar "The Sound of Music" e acabasse esbarrando na família Trapp.
Atormentado por mágoas, ressentimentos e desejos incubados, o Frankenstein em cartaz carece menos de um cineasta que de um bom analista. Aliás, nem bom ele precisaria ser para desatar o nó górdio psíquico desse Prometeu moderno, desse Édipo de proveta também com contas a ajustar com seu pai.
Frankenstein é o mais sentimental dos mitos horroríficos e o que mais compaixão suscita, sobretudo por sua carência afetiva, impossível de ser saciada sem a repetição da monstruosidade que o gerou. Adão sem Eva, Frankenstein tornou-se o símbolo máximo dos descaminhos da ciência desde que a primeira edição do romance chegou às livrarias, em 1818. Nunca perdeu a atualidade. Nem perderá se a engenharia genética levar adiante os seus mais insanos devaneios.
Branagh tinha tudo para fazer um filme bom e atual. Errou a mão, como o dr. Frankenstein, e criou um monstro, que, como se sabe, está se vingando dele na bilheteria.

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Sobre "Frankenstein" à pág. 5-6

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