São Paulo, sábado, 21 de janeiro de 1995
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Recursos públicos, benefícios privados

DAVID CAPISTRANO FILHO

Faz tempo que a iniciativa privada lança seu olhar guloso sobre as verbas do Sistema Único de Saúde (SUS). A proposta que a Folha coloca hoje em debate vem abrir o caminho para a satisfação desse apetite. Esperamos que isso não ocorra, pois contamos com a decidida resistência das forças comprometidas com a saúde pública.
A atual ofensiva contra o SUS está longe de ser pioneira. O sistema vem sendo alvo de ataques e sabotagem desde que nasceu, com a Constituição de 1988. Em São Paulo, a decisão política dos governos estadual e municipal de não fornecer os recursos necessários ao seu bom funcionamento estimulou e precipitou o sucateamento, que agora se usa como pretexto para tentar ferir de morte a rede pública.
Uma observação preliminar. A lei impede que servidores públicos, ainda que licenciados, se organizem para participar de licitações promovidas pelo governo. O contrário seria um gigantesco estímulo à corrupção.
Mas não se trata de desperdiçar este precioso espaço com aparências. Discutamos a essência. O plano? Dar aos pobres um serviço de saúde pobre, porém bastante lucrativo –para alguns. O próprio secretário municipal da Saúde de São Paulo já informou que, segundo seu projeto, as "cooperativas" poderão contratar convênios médicos privados.
Sobre a eficácia e a voracidade desses convênios podem falar os usuários. Da nossa parte, preferimos abordar o aspecto de "modernização e dinamismo" que embala a proposta.
Sistema dinâmico? Num aspecto, sim. Será um negócio dinâmico: uma clientela numerosa vai ser incorporada ao circuito da medicina privada.
O número, porém, não constituiria um estímulo à altura se a recompensa dependesse da (baixa) renda dos usuários potenciais. Aí entra o traço constitutivo do capitalismo brasileiro: os lucros seriam garantidos pelo erário. Recursos públicos, benefícios privados.
Outro efeito seria a expansão metastática, na rede municipal, da deformação velha nossa conhecida nas organizações privadas: empurrar para fora do sistema as patologias de custo mais elevado (Aids, cirurgias cardíacas, queimaduras graves, politraumas etc.). Para fora em termos. Para dentro da rede estadual, no caso de São Paulo.
Já podemos até imaginar o cenário. Funcionários públicos inescrupulosos, caciques políticos sedentos de poder e dinheiro, grupos médicos privados, espertos de todos os tipos lutando para cadastrar mais e mais, para ganhar mais e mais dinheiro, pressionando para fora do sistema os portadores das doenças que "não interessam". Fraudes, escândalos, destruição.
Não é disso que precisamos. As dificuldades não nos devem empurrar para o suicídio.

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