São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 1995
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O mestre elogia e adverte o presidente

CYNARA MENEZES
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Viver sob a Presidência de um social-democrata não deixa o deputado Florestan Fernandes (PT-SP) encabulado em dizer: "Sou comunista".
Nem poderia. É o presidente-sociólogo Fernando Henrique Cardoso quem admira antes o deputado, seu professor na Faculdade de Filosofia da USP e quem o considera seu mentor intelectual.
Depois de dois mandatos, Florestan deixa a Câmara dos Deputados esta semana, aos 74 anos, feliz com o reconhecimento de sua experiência na política.
Com uma cirrose contraída após uma hepatite, ele preferiu não concorrer à reeleição. É o desfecho da experiência política do sociólogo marxista com história de vida incomum.
Filho de uma doméstica que mal completou o primário, sentiu na pele os problemas da classe que escolheu defender, até se tornar um dos maiores intelectuais do país e mestre daquele que viria a ser presidente.
Em entrevista à Folha Florestan fala sobre sua vida e faz uma análise imparcial do governo. Apesar de apostar no "potencial" de FHC para fazer um bom governo, incomoda-se com a "oligarquia que nunca largou o poder", que ladeia o presidente.

Folha – Qual o lado bom de se chegar aos 74 anos? Florestan Fernandes - Eu tenho uma vida vivida. Isso é muito importante. Agora, é preciso ver qual o horizonte intelectual da pessoa, porque a idade não é um valor.
A pessoa pode viver vegetativamente ou de uma forma criadora, não importam as suas origens. Minha raiz está no lumpemproletariado. Sou da primeira geração de portugueses nascida no Brasil.
A gente veio para trabalhar no campo. Minha mãe foi para a cidade, e a única coisa que ela estava habilitada a fazer era trabalhar como doméstica.
Nós levamos uma vida penosa, ficou muito difícil para mim ir além. Sequer consegui completar o curso primário. Eu e minha mãe estávamos soltos no vendaval.
Folha – E o pai do sr.?
Florestan - Meu pai morreu de febre amarela. E, infelizmente, os homens que se casam com uma mulher que tem uma renda própria, quase sempre o intuito é explorar a mulher. Foi assim com meu padrasto. Então minha mãe expulsou ele de casa, e eu, com 6 anos, comecei a trabalhar. Não é nenhuma tragédia grega, mas foi um drama para mim.
Folha – Como o sr. chegou a se formar em sociologia?
Florestan - Eu tinha um impulso em aproveitar as oportunidades. Trabalhei em salão de barbeiro, de engraxate, como auxiliar de marceneiro, alfaiate, cozinheiro.
E lia muito. Tinha a capacidade de ler e aprender assuntos que se espalhavam de história até ciências exatas. Era o autodidata típico. Em cima do bar em que eu trabalhava, se instalou o curso Riachuelo, um curso de madureza, e pude fazer cinco anos em três.
Quando terminei a madureza, fiz o teste para a universidade e passei. Foram 39 candidatos e seis aprovados. Eu fui o quinto. Comecei a estudar e, ao mesmo tempo, trabalhava como representante de artigos dentários. Só quando passei a ensinar em tempo integral na universidade deixei de ser propagandista de remédios.
Folha – O sr. fez a opção pela esquerda por causa de sua origem pobre?
Florestan - Há duas polaridades. Uma delas é da experiência humana concreta. Eu, felizmente, não cumpri o caminho comum entre imigrantes de aspirar à ascensão social e adotar as técnicas das classes dominantes. Fiquei fiel a minha origem social.
Folha – O sr. foi muito influenciado pelos conceitos de Karl Marx e Max Weber?
Florestan - Fui mais influenciado por Marx, mas tive que estudar Weber. Também fui muito influenciado por Durkheim. Nunca li tudo que devia ler deles, isso exigiria três vidas. Mas aprendi alguma coisa e me foi útil. Li outros autores, como Freyer, que tenta cruzar Marx com Weber.
Folha – O sr. acha possível?
Florestan - Sim, o próprio Lenin citava Weber, não muito, mas Gramsci, que era socialista, citava muito Weber.
Folha – Hoje, com um presidente weberiano, o sr. considera que Marx está ultrapassado?
Florestan - De jeito nenhum. Weber acabou sendo deformado na universidade, especialmente nos EUA. Foi norte-americanizado. Há toda uma parte teórica que não se prejudica com isso, mas se ignora que ele foi protestante, com posições social-reformistas.
Toda a obra dele está vinculada às lutas que se dão na Alemanha pela transformação da sociedade, do Estado, e nada disso aparece na tradição acadêmica oficial dos EUA. Só aparece o Weber domesticado pelos cientistas políticos.
Folha – O sr. acha que Fernando Henrique foi seu aluno mais brilhante?
Florestan - É difícil dizer, porque tive alunos brilhantes que aproveitaram o talento e fizeram carreiras universitárias brilhantes. Mas, dos alunos brilhantes, ele foi quem teve maior êxito. No plano internacional, ele e Octavio Ianni foram os que mais saíram.
Folha – Como era o aluno FHC?
Florestan - Ele me atraiu por ser uma pessoa de talento, com espírito crítico, sempre alegre, disposto a conversar. Mantendo uma tradição dos professores franceses, eu procurava aproveitar o que havia de melhor entre os estudantes para a carreira universitária.
Era minha função. Tanto que, quando alguém vinha dizer que ia fazer doutorado comigo, eu dizia: "perdão, mas os meus candidatos a doutorado não me escolhem, sou eu que escolho".
Parece uma afirmação autoritária, mas não era. Era objetiva, para que não se implantasse uma valorização superficial das pessoas. Apesar de falarem que eu só escolhia alunos de esquerda, não é verdade.
Fernando Henrique teve um êxito muito grande como estudante para chamar minha atenção, para que eu fosse procurá-lo, convencê-lo a se interessar por essas coisas. Era como eu, uma pessoa que pulava para fora dos muros da universidade.
Folha – Quando se deu o distanciamento ideológico entre o sr. e Fernando Henrique?
Florestan - Enquanto nós estivemos dentro da universidade, estávamos presos por aquela solidariedade que nos punha em defesa contra a tendência do meio ambiente de absorver a Faculdade de Filosofia na mediocridade que existia nas antigas escolas superiores. Neste ponto, não havia diferenças de pensamento e de ação.
Folha – Foi quando o sr. se decidiu a entrar no PT que ocorreu este distanciamento?
Florestan - O Fernando Henrique esteve mais próximo de entrar no PT do que eu. Quando fui convidado pelo Lula, impus algumas condições que ele não aceitou, e só entrei no PT mais tarde.
Já Fernando Henrique participou de atividades no ABC junto com Lula, em defesa do movimento operário. Mas, ao mesmo tempo em que podia ser seduzido pelo PT, ele estava preso ao PMDB.
Tinha ligações com Ulysses Guimarães que davam a ele certeza de que poderia realizar uma carreira política no que se define como tancredismo. Quando o tancredismo ou mudancismo surge como uma resposta à eleição indireta, Fernando Henrique era a cabeça que estava por trás.
Folha – Aí ele deixou de ser uma pessoa de esquerda para ser de centro-esquerda?
Florestan - Não posso dizer isso. Eu não sei se ele teve ou não alguma cisão. Quando Fernando estava no PMDB, a esquerda do partido era relativamente grande. Havia um centro e uma direita. E, naturalmente, as perspectivas que ele tinha eram muito mais amplas.
Folha – Hoje não?
Florestan - Hoje é preciso experimentar. Eu aprendi desde criança que o valor do bolo você comprova comendo. O que ele vai realizar no governo é que vai dizer até que ponto ele fala em questões sociais com a mesma perspectiva que falava quando atuamos juntos.
Folha – O sr. acha que ele pode fazer um bom governo?
Florestan - Bem, eu acredito que ele tem potencial para isso. Agora, um bom governo não depende só do presidente. É um erro muito comum no Brasil confundir o governo com o poder criativo.
Como se fosse o Deus 'ex-machina'. Ele está lá em cima, é o Espírito Santo que cria e transforma. O que importa mais é a sociedade civil, a maneira como se coloca diante do poder.
Folha – O sr. concorda com o senador Darcy Ribeiro (PDT-RJ) quando ele diz que este governo será de Marco Maciel e só o próximo de FHC?
Florestan - Não, o próprio Marco Maciel é uma peça deste jogo de xadrez. É determinante, não determinado. Estamos diante de uma oligarquia que nunca largou o poder, que sempre exerceu o poder em nome da democracia, mas de forma autocrática ou ditatorial.
Folha – Esta oligarquia vai atrapalhar o governo?
Florestan - A expectativa é essa. Torna-se difícil pensar que, com aliados deste tipo, é possível transformar o Brasil.

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