São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 1995
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O exotismo do Júlio Verne brasileiro

VALÉRIA LAMEGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O Doutor Benignus", de Augusto Emílio Zaluar, é o primeiro romance brasileiro de ficção científica, ao estilo Júlio Verne. Adaptado ao mais exótico cenário nacional, o romance nos apresenta com muito humor uma horda de viajantes brasileiros e estrangeiros que se embrenha pelo país na tentativa de desenhar, à luz da ciência, a natureza e seus fenômenos mais recônditos.
O sábio Benignus, personagem principal, é quem conduz a trupe de viajantes. Partindo de Minas Gerais, eles seguem viagem até o rio Araguaia, onde tentam resgatar um viajante inglês, prisioneiro do chefe Koinaman, da tripo carajás.
Embora a fixação de Zaluar pelos grandes empreendimentos dos viajantes e pela ciência sejam marcantes, o ponto alto de "O Doutor Benignus", como bem observa o cientista político José Murilo de Carvalho, no prefácio, é o exotismo do sábio doutor.
Mais do que isso, o romance deixa visível o projeto de progresso científico da elite brasileira, que sonhava com a medição das estrelas e bancava seus sonhos mais exóticos com o plantio do café e o trabalho escravo.
A reedição de O Doutor Benignus, depois de 119 anos de total obscuridade, não traz à tona apenas uma obra literária que foi ignorada pela crítica do século 19. Também volta à cena o jornalista e escritor Augusto Emílio Zaluar (1825-1882), que nasceu em Lisboa e naturalizou-se brasileiro, vivendo a euforicamente as grandes criações científicas de sua época.
Zaluar tem uma biografia tão eclética quanto os conhecimentos esbanjados em sua obra. Como seu personagem, formou-se em medicina, embora tenha se dedicado ao jornalismo (ele publicou seus artigos no Diário do Rio de Janeiro e no "Correio Mercantil") e à produção de livros didáticos.
Em 1873, Zaluar publica "Peregrinações pela Província de São Paulo". Elogiada por Machado de Assis e criticada, mais tarde, por Sérgio Buarque de Holanda, é seu livro mais comentado, no qual desenha um quadro sócio-econômico de São Paulo entre 1860 e 1861.
O que torna "O Doutor Benignu" uma obra pitoresca, no entanto, é justamente o fato de Zaluar tentar inserir em um romance o seu conhecimento e sua prática científica. Entre uma aventura e outra de seus viajantes, ele defende teses sobre botânica, zoologia, geografia, demografia, economia, mineralogia etc.
Qual a diferença entre uma planta mono e outra dicotiledônea? Ele explica. Até porque, escreve Zaluar, "não há um só fenômeno da natureza que não tenha explicação grandiosa aos olhos do observador científico".
Para melhor entender esse mundo de "homens maravilhosos", o romance foi submetido à revisão das filólogas Helena Cavalcanti Lyra e Ivette Savelli do Couto, da Casa de Rui Barbosa, que realizaram uma criteriosa revisão ortográfica e redigiram notas biográficas sobre famosos personagens da história, da ciência e da filosofia, como Camille Flamarion, Perthes de Boucher e John Stuart Mill, citados na obra.
A ciência, em "O Doutor Benignus", é apresentada com a mesma força lírica dos poetas românticos de meados do século passado. O próprio Zaluar perpetrou seus versos açucarados, como podemos conferir em "Dores e Flores" (1851) e "Revelações" (1862). O que nos leva a deduzir que este autor do século passado cumpriu com rigor a máxima de Nietzsche, segundo a qual "o homem científico é a continuação do homem artístico".

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