São Paulo, sexta-feira, 27 de janeiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Clermont-Ferrand celebra centenário

AMIR LABAKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O cinema nasceu curta e através do gênero há um século vem se empurrando suas fronteiras artísticas. É esta a tese central da retrospectiva "Um Século de Curtas" que a partir de hoje monopoliza as atenções no Festival de Curtas-Metragens de Clermont-Ferrand (centro da França), a Cannes do curta.
Uma consulta a críticos e cinematequeiros do mundo todo definiu a lista dos cem curtas-metragens mais importantes destes mais ou menos cem anos de cinema.
A relação final de títulos banca a aposta. Com restrições, claro, como sempre se dá com este tipo de seleção. "Um Século em Curtas" começa reunindo os clássicos do primeiro cinema.
Curiosamente, o mais antigo filme é alemão, "Programa de Um Jardim de Inverno", de Max Skladanowsky (1895), como que reconhecendo o nascimento do cinema como um esforço coletivo.
Os irmãos Lumière assinam apenas o segundo mais antigo título escolhido, "A Batalha das Bolas de Neve".
Seguem-se os arquitetos da linguagem do espetáculo cinematográfico, de Georges Méliès e Alice Guy na França e Cécil Hepworth na Grã-Bretanha a Edwin S. Porter e David Wark Griffith, o maior de todos, nos EUA.
A precoce estratégia mercantil da segmentação em gêneros é logo mapeada, com as comédias de Chaplin, Buster Keaton e o Gordo e o Magro, com a aventura em "Suspense" de Lois Weber e Philips Smalley (EUA, 1913), com um documentário etnográfico anônimo da Finlândia.
Surpreende nesta parte inicial do ciclo dedicada ao cinema mudo a tímida presença das escolas de cinema experimental. Da célebre escola poética francesa há apenas "O Silêncio" de Louis Delluc (1920) e, obrigatório, "Um Cão Andaluz" de Bu¤uel e Dali (1929).
A intensa atividade da vanguarda alemã dos anos 20 e 30 apresenta tão somente as abstrações musicadas do "Estudo nº 7" de Oskar Fischinger (1931). Pior acontece com os fundamentais experimentos do cinema russo pré (Evgen Bauer) e pós-revolucionário (Eisenstein, Vertov etc.): nem um só título.
A Rússia só começa a marcar presença no ciclo com dois pioneiros do cinema de animação instalados, evidentemente, na França: Stanislas Starewicz ("Fetiche de Mascote", 1933, obra tardia e secundária) e Alexander Alexeiev ("Uma Noite Sobre o Monte Chauve", 1933).
Tão grave quanto é a virtual supressão de representantes da principal escola transeuropéia do cinema mudo, a das elegias urbanas, que aproximaram a câmera do dinamismo das ruas e desenvolveram a montagem fílmica em ritmo musical.
Resultado: filmes cruciais para a formação do imaginário cinematográfico e para o desenvolvimento da gramática do curta-metragem ficaram de fora, como "Entr'Acte" de René Clair (1924), "Rien Que les Heures" do brasileiro Alberto Cavalcanti (1926) e "A Propos de Nice" de Jean Vigo (1930).
Obras fundamentais nelas mesmas mas apenas marginalmente vinculadas à tendência oferecem alguma compensação: são, ambos de 1929, "A Chuva", do mestre holandês do documentário, Joris Ivens, e "Douro, Faina Fluvial", filme de estréia do longevo Manoel de Oliveira ("Vale Abraão").
Após a revolução do cinema sonoro, o curta se firma como formato privilegiado para a busca de novos caminhos para o cinema, distanciando-se um pouco dos chamados do mercado.
O curta ficcional cede espaço para o documentário, principalmente a escola britânica ('Correio Noturno", 1936, de Wright e Wyatt), a experimentação, capitaneada nos EUA pela pioneira Maya Deren ("Malhas da Tarde", 1943), e a animação, que descobriria no canadense Norman McLaren seu novo mago ("Blinkity Blank", 1955).
A seleção de Clermont-Ferrand é exemplar na relevação da importância dos experimentos em curta-metragem, no novo período áureo entre 1955 e 1965, para a explosão criativa planetária com os "cinemas novos" (Nouvelle Vague francesa, Free Cinema britânico, Cinema Novo brasileiro, novo cinema alemão, novas ondas do Leste Europeu).
Estão na lista, lado a lado, as estrepolias adolescentes de "Mamãe Não Deixa" (1955) de Tony Richardson e Karel Reisz e de "Les Mistons" (1958) de François Truffaut, os reexames do corriqueiro em "Couro de Gato" (1962) de Joaquim Pedro de Andrade e em "A Brutalidade da Pedra" (196o) de Alexander Kluge e Peter Schamoni, as renovações da montagem do documentário em "La Jetée" (1963) de Chris Marker, "Now" (1965) de Santiago Alvarez e "No Inicio" (1967) de Artavasz Peleshian.
A década de 70 registra no curta uma leve perda de ímpeto, exceto nas animações (bloco ainda soviético e Canadá à frente) e com um ou outro novo nome na área experimental (o polonês Zbigniew Rybcinski, representado em Clermont por "Novo Livro", de 1975, o britânico Peter Greenaway, injustamente esquecido).
Foi como uma parada para tomar fôlego para o que viria na década de 80. A revolução tecnológica na produção, distribuição e exibição do audiovisual transforma o curta-metragem cinematográfico velho de guerra no novo e maleável "formato curta".
O curta como arte recebe uma injeção de ânimo com os horizontes ampliados no campo dos efeitos especiais e da computação gráfica. O curta como indústria fortalece-se como nunca devido ao vigoroso mercado de televisão.
Não é à toa que 1989 é o ano com o maior número de títulos no ciclo (seis, contra cinco de 1929 e quatro de 1955). São dessa mesma safra o marco de animação por computador "Bibelô", de John Lasseter (guarde este nome), a deliciosa comédia "Bobagens" de Jean-Pierre Jeunet, que logo depois assinaria com Caro o longa "cult" Delicatessen", e o contundente "Ilha das Flores" do brasileiro Jorge Furtado.

Texto Anterior: 'Amateur' mistura ação e desejo
Próximo Texto: Competição tem três brasileiros
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.