São Paulo, sábado, 28 de janeiro de 1995
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A privatização e as contas de FHC

ARMANDO CASTELAR

Em sua edição de julho/agosto de 1993, a revista "Latin Finance" vaticinava: "Quando o Brasil finalmente sucumbir às suas necessidades fiscais, o que os 'insiders' dizem que é inexorável, ele será a última bonança da privatização na América Latina. Ninguém questiona que isto vá acontecer; é apenas uma questão de tempo."
A profecia da revista não se baseava em nenhuma peculiaridade de nosso país. Pelo contrário, o recurso à venda de estatais para cobrir déficits públicos ou mesmo viabilizar a redução de impostos tem sido não apenas um traço comum mas também a motivação individualmente mais importante por trás da maior parte dos processos de privatização em todo o mundo.
Curiosamente, muitos economistas –e a maioria daqueles fora dos governos dos diversos países– fazem coro em criticar esta política. Na popular imagem do ex-ministro Mário Henrique Simonsen, financiar os gastos públicos com a venda de estatais é como vender um apartamento para pagar a conta do restaurante.
De fato, como foi colocado a esse respeito, "a privatização é mais um exemplo dos governos fazendo a coisa certa pelos motivos errados."
Até aqui, o PND (Programa Nacional de Desestatização) tem sido utilizado majoritariamente para abater dívida pública. As exceções ficaram por conta do uso de receitas para financiar gastos em pesquisa e desenvolvimento e, mais recentemente, para integralizar o Fundo Social de Emergência.
Mesmo com o FSE, contudo, o PND permaneceu essencialmente voltado para abater o passivo público, objetivo retificado com a criação do Fundo de Amortização da Dívida Pública. A contribuição do programa para o ajuste fiscal resulta do não pagamento de juros, do fim dos subsídios e do fato de que as ex-estatais, agora lucrativas, passaram a pagar impostos.
Contudo, a julgar pelo debate atual sobre a privatização brasileira, e a despeito do coro dos economistas, os "insiders" ouvidos pela "Latin Finance" estão em vias de ver realizada a sua profecia.
Confrontado com um déficit potencial de R$ 11 bilhões em 1995, o governo se volta para a venda de estatais como fonte de financiamento. Justiça seja feita, esta solução é explicitamente reconhecida como provisória, um recurso a ser utilizado até a conclusão das reformas constitucionais nas áreas tributária e previdenciária.
Argumenta-se que, dada a inevitabilidade do déficit, esta alternativa de fato equivale a abater dívida. De outra forma, se aumentaria a dívida pública com uma mão, para resgatá-la com a outra. O financiamento direto apenas abrevia o processo.
Há, ainda assim, pelo menos três qualificações a fazer a este respeito.
Primeiro, em quaisquer circunstâncias, priorizar o uso das receitas da privatização no financiamento do déficit público não é desejável porque tende a comprometer outros objetivos mais importantes a longo prazo, como a democratização do capital e o aumento da eficiência e do investimento.
A experiência argentina ilustra isso bem. A venda das Aerolineas Argentinas teve de ser parcialmente revertida, a regulação de serviços públicos ficou prejudicada, monopólios foram mantidos para aumentar o valor econômico das empresas, e assim por diante, tudo como resultado da urgência em usar a privatização para financiar o déficit.
Segundo, esta estratégia inevitavelmente enfraquece as coalizões políticas em favor de reduzir o déficit permanentemente. No contexto do próprio Executivo, com o fortalecimento dos ministérios "gastadores" em detrimento daqueles que defendem a contenção dos gastos. No âmbito do Congresso, porque com o uso das receitas da privatização pode-se adiar o já tantas vezes postergado ajuste fiscal. Na lógica da política, em qualquer lugar do mundo, aumentar impostos, cortar gastos ou acabar com privilégios é sempre algo que se deseja adiar tanto quanto possível.
Finalmente, a experiência internacional mostra que, a despeito das intenções dos governos, as receitas da privatização, quando chegam, chegam tarde e em volume insuficiente para contribuir significativamente para o ajuste fiscal. Ao contrário, este é normalmente alcançado através do corte de despesas e do aumento de receitas tributárias, concomitantemente à privatização.
Uma possível explicação é a de que a força política necessária para se alcançar grandes privatizações com rapidez é tão grande que um governo capaz de fazê-lo é tão ou mais capaz de ajustar as contas públicas por meios tradicionais.
Obviamente, a decisão de usar ou não a privatização para financiar o déficit dependerá, em última instância, do julgamento do "policy maker" sobre a inelasticidade dos gastos e das receitas fiscais. Além disso, o discurso fiscalista pode ser importante para se levar a desestatização em frente. Seria bom, contudo, se a privatização brasileira pudesse atingir o volume e a celeridade previstos pela "Latin Finance", mas pelos motivos certos.

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