São Paulo, sábado, 28 de janeiro de 1995
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Franceses renegam legado de Le Corbusier

MARIA IGNEZ MENA BARRETO
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PARIS

Em 1989, Henri Gaudin recusava o Grande Prêmio de arquitetura que um júri "modernista" pretendia fazê-lo dividir com um antigo assistente de Le Corbusier. Com a entrega do prêmio "L'Équerre d'Argent" concedido na última quarta-feira pelo grupo editorial "Le Moniteur" a uma das mais brilhantes realizações arquitetônicas oferecidas à cidade de Paris –o estádio olímpico de Charléty, projeto de Henri e seu filho Bruno Gaudin– a crítica francesa redime-se da incoerência de então.
O trabalho de Bruno e Henri Gaudin parte do princípio de que arquitetura e urbanismo constituem uma mesma disciplina: o que não significa um acúmulo de funções por um mesmo profissional, mas uma concepção complexa do trabalho do arquiteto como necessariamente enraizado no tecido urbano, pelo qual ele é constituído e do qual é constituidor.
Concedendo este prêmio ao Estádio de Charléty, a crítica consagra não apenas uma obra, mas um trabalho de um rigor moral, intelectual, formal e técnico infelizmente muito raro neste domínio.
Leia a seguir trechos da entrevista que os dois arquitetos concederam à Folha, com exclusividade, em Paris.

Folha - A aparição de seus trabalhos no final dos anos 70 se caracterizou por uma crítica da arquitetura moderna?
Henri Gaudin - Crítica daquilo que se chamou arquitetura moderna, daqueles que se apropriaram indevidamente do movimento moderno. Porque é evidente que o dever de todo ser, de todo artista, de todo arquiteto, é ser moderno.
O que eu fiz foi criticar esta arquitetura moderna que esquece de pensar nas pessoas, que na maioria das vezes privilegia a técnica em detrimento do espaço, esta arquitetura enfim que produz objetos sem se preocupar com aqueles que os utilizam, que fabrica caixas empilhadas umas sobre as outras, objetos solitários, desprovidos dessa alteridade que está na base de toda possibilidade de diálogo.
Folha - O que marca a originalidade de sua postura, é que ela se fundamenta em uma análise extremamente sensível da cidade européia tradicional.
Henri Gaudin - A arquitetura não começou no século 19 com Hausmann nem há 50 anos com Le Corbusier. Nas cidades tradicionais, existe consciente ou inconscientemente uma preocupação com o espaço. A arquitetura é frequentemente vista sob o ângulo da estrutura, da técnica, dos materiais, enquanto que para viver, nós precisamos de espaço, ou melhor, de espaçamento. É o espaçamento que nos permite respirar.
A observação das cidades tradicionais nos leva a constatar que, com suas ruas, ruelas, pórticos, pátios e praças, elas possuem o sentido mesmo do espaçamento. São lugares onde o espaço público tem uma grande importância. Mas eu não sou em absoluto passadista. O que eu tentei encontrar nessas cidades do passado são coisas que continuam sendo interessantes para a modernidade.
As formas mudam porque os materiais mudam, a mentalidade muda também, mas tem uma coisa que me parece digna de continuar a ser buscada: a possibilidade para as pessoas de trocar, dividir uma refeição, um sentimento amoroso, se encontrar, dialogar.
Folha - O senhor tem guardado, ao longo destes anos, uma grande fidelidade às suas convicções. E isto mesmo quando as condições urbanas são pouco favoráveis, como no caso do estádio de Charléty.
Henri Gaudin - Sim, evidentemente, as condições são muitas vezes difíceis. Nossa tarefa de homem, no entanto, é de tentar lutar contra a necessidade. Ser humano, é também dizer não: não à violência, não à necessidade e mesmo não à gravidade. Nós nos mantemos em pé, o que é uma outra forma de dizer não à gravidade.
Se o estádio de Charléty tem algum mérito, é o fato justamente de ele não ser uma porta, um cinturão, um fechamento, mas, ao contrário, uma abertura em direção ao horizonte.
Bruno Gaudin - De fato, um estádio tem frequentemente a forma de uma concha fechada em proporções monumentais. Aqui, o que foi buscado foi acima de tudo a permeabilidade, a transparência, a abertura. No lado leste do estádio a linha da cobertura que cobre as arquibancadas dá quase a impressão de estar suspensa no ar.
Outro ponto importante é o fato de que o nível da rua penetra sob o estádio e se transforma em uma espécie de grande passeio, quase um fórum público. Nos dias de jogo ele se torna um prolongamento da rua anterior do estádio. Nós temos, assim, entre a primeira e a segunda coroa de arquibancadas, um espaço vazio, constantemente aberto, que permite ao mesmo tempo a visão do evento esportivo e da paisagem em volta.
Henri Gaudin - Poderíamos falar de Charléty quase em negativo. Ou seja, falar não do que é visível, mas do espaço, dos interstícios entre as coisas. O que eu quero dizer com isso é que o importante em arquitetura, é menos o positivo, menos os objetos eles mesmos que o espaço oferecido.
O que é magnífico em Paris, em Roma, em Amsterdã ou em outros lugares é menos os prédios, as esculturas, os monumentos que aquilo que não se vê: o ar que nos é dado, o deixar acontecer nossos passos e nossa existência.
Folha - A fachada do Comitê Olímpico na avenida de Gentilly dá para a Casa do Brasil, projeto de Le Corbusier e de Lúcio Costa. Como vocês viveram essa proximidade?
Henri Gaudin - Alegremente, simplesmente, sem uma preocupação extraordinária. A Casa do Brasil possui os defeitos e as qualidades de Le Corbusier. Ou seja, ela tem as suas qualidades, que são as de um grande desenhista, um grande escultor, de alguém que sabe o que é um volume, mas ela tem os defeitos da ideologia da época.
Este prédio de Le Corbusier é solitário. Nós tentamos, no entanto, buscar nós mesmos uma certa coerência, levando em conta, por exemplo, a sua altura para que, inclusive, o prédio de Le Corbusier ganhe um sentido novo.

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