São Paulo, segunda-feira, 30 de janeiro de 1995
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Stones evocam a nossa natureza animal

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A noite no Pacaembu tinha uma luz rara: parecia que estávamos em um outro lugar do espaço. A magia se dava porque o grupo tocava de um ponto perdido no passado. Não um passado morto, mas o tempo que pariu o melhor de nossas vidas presentes.
Acostumados à condição de "boiada pop" de ídolos fascistas e antipáticos, ouvintes da decadência do rock e da desidratação fria da cultura pelo "marketing" do nada, acostumados aos rituais vazios de Madonna e dos eternos irados cabeludos que deblateram contra um falso sistema que os alimenta, nos sentimos de repente diante de alguma coisa relevante.
Claro que já conhecíamos os Stones, claros que eles estão entranhados em nossas carnes, roupas e cabelos há 30 anos, claro que nos beijamos com furor nas arquibancadas por causa da boca de Mick, claro que nossas línguas aprenderam muito com as caretas do grupo, claro que o nosso sexo é hoje mais complexo que os espinhentos punheteiros dos anos 50.

Ao alcance das mãos
Mas a presença viva do grupo, o corpo de Mick ao alcance das mãos esticadas dos fãs junto à passarela, o sorriso triste de Watts, a cara de "peru frio" de Keith ali no Pacaembu, perto da piscina do Maluf, ali onde joga o Corinthians, o Santos, ali junto de nossos vendedores de mate e sorvete, isto nos trouxe a sensação de importância.
Não que tenhamos ficado "honrados" com a presença deles. Não. A coisa colonial eles não deixam pintar, ao contrário dos babacas que nos humilham quase sempre, do alto de seus palcos-altares.
A sensação de "importância" era a de participar de um ritual dirigido pelos xamãs do tempo moderno, de quatro pessoas que são iguais a nós e que, mesmo em meio a luzes loucas, fogos e muitos milhões de dólares, não cessam de nos lembrar que estão do nosso lado, que são irmãos querendo nosso bem; e provam isso desde a simplicidade dos adeuses amigos aos fãs, na chegada, até a imensa generosidade do show de três horas debaixo de chuva, com uma qualidade sonora e poética da mais alta riqueza, com níveis de significação que a melhor poesia culta atinge apenas algumas vezes, em níveis visuais no telão de cristal líquido que só evocam e sintetizam materiais nobres da arte moderna, com uma decupagem informada do melhor cinema e da desmontagem crítica da visualidade dos tempos, tudo numa visão não deslumbrada ou servil da tecnologia dos grandes efeitos especiais.
Efeitos visionários e não cegantes ou diversionistas. Em suma, uma "montanha de Hegel", foi a frase meio ridícula que me ocorreu quando vi o grande palco se acender e pensei no "Espírito querendo se libertar da finitude".
Claro que é palhaçada invocar minha falsa erudição para descrever um show de rock. Mas este transcende a coisa e vira um evento em que os conceitos vão correndo atrás em desespero, tentando encaixar interpretações. Adorno, que não reconheceu nem o jazz, se disfarçaria de pipoqueiro ali no Pacaembu, diante da evidência da genialidade do fato.
Por isso a sensação do público foi a de "importância". Estávamos todos dentro de um grande momento da cultura do século 20 e compreendemos melhor o que os Stones fizeram estes anos todos para melhorar a vida humana e para nos proteger contra os inimigos que querem destruir nosso maior tesouro: a natureza animal.
Estávamos durante três horas dentro do melhor lugar do mundo, no mais alto nível possível. E saímos todos de olhos iluminados, mais cultos, mais inteligentes, mais livres. Grandes homens estes. Muitos idiotas cultos acham que eles fazem apenas rock'n roll.

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