São Paulo, segunda-feira, 30 de janeiro de 1995
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Peladona do terceiro andar cansa a vista

MARCELO PAIVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Seres megaurbanos como eu, alguns de vocês, muitos de nós, paulistanos, são contaminados pela febre do estar por dentro. Sofremos quando, por um lapso imperdoável, deixamos de ler o tal livro, ver o tal filme, ou a peça do fulano que é o tal. Somos derrubados quando, numa festa, o assunto é a última entrevista, a última declaração ou a foto recente de um jornal ou revista não assinada. É a angústia do ficar por fora, do ser passado pra trás, de ser corroído pela mais grave doença do século: a desinformação aguda.
Pois um chegado me ligou de Nova York só para me perguntar se eu já tinha assistido ao filme "Hoop Dream". Minha pressão baixou. Senti as paredes se aproximarem, o chão se mover. À beira de um colapso, consegui balbuciar: "Não". Resisti firme por alguns segundos. Mas quando ele disse que o filme estava fazendo o maior sucesso em Nova York e que a cidade toda estava comentando-o, desmaiei.
Está bem. Fui lá correndo assistir ao tal filme, um documentário de três horas, filmado em quatro anos, sobre o sucesso e insucesso de dois moleques do gueto, jogadores de basquete, que entram no esquema doente em que muitas vítimas inocentes deste país são empurrados: boas escolas e universidades disputam com unhas e dentes adolescentes bons de bola, vendendo-lhes a idéia de que a única alternativa para saírem da pobreza é se matarem nas quadras, trazendo prestígio e dinheiro para empresários do setor educacional. Por trás do esquema, estão empresários da NBA, liga profissional de basquete.
Mas o que me chamou a atenção foi outra coisa. O cinema estava apinhado. Um documentário independente é capaz de repercutir e faturar mais que um produto hollywoodiano. Lembrei do cinema brasileiro e dos poucos documentários produzidos na "pátria amada, salve, salve". E me lembrei de rolos e rolos de filmes gastos para desnudar uma atriz da Globo, SBT, uma modelo, atleta ou coisa do gênero.
Tudo isso para concluir que o cineasta brasileiro é um "voyeur", que quando consegue uma bolada para fazer um filme, lambe os beiços planejando qual atriz irá contratar para vê-la peladona. E na terra do futebol não existe um documentário decente sobre o tema. Em compensação, conhecemos em detalhes (closes) as bundas e peitos de milhares. É isso mesmo, acordei azedo hoje, por quê? Vai encarar?

MARCELO RUBENS PAIVA está em San Francisco (EUA) como bolsista da Knight Fellowship, na Universidade de Stanford

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