São Paulo, terça-feira, 31 de janeiro de 1995
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Rolling Stones não são apenas rock'n roll

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Quando a serpente soltou uma língua de fogo e o show começou debaixo de raios e Mick Jagger entrou de casaco vermelho, parecia que estávamos num outro lugar que não em São Paulo. Estávamos no futuro ou no passado? Estávamos no futuro do passado dos anos 60.
Não era apenas mais um megashow, como os gelados eventos de estrelas frias como Madonna e Michael Jackson. Nos shows dos 90 há um abismo entre nós e eles. Nós somos os olheiros, os otários, os fracassados. Eles são os deuses. Há também um claro desígnio de que aquilo que se passa ali, entre holofotes e caixas, seja um corte para fora da vida, que nada tenha a ver com o mundo real, e que, ao contrário, seja um "break", uma viagem, um esquecimento.
Madonna organiza uma orgia programada, uma falsa liberdade de robôs perversos; Michael Jackson começa como Fred Astaire e termina como uma "Xuxa" negra, querendo nos convencer de uma sexualidade "hyper", para esconder sua pobre pederastia inconfessada. O mundo não existe nestes aquários gelados. Só os ídolos e seu êxito, sua imortalidade falsa, seu não-sofrimento fingido, seus corpos de clones. Jackson e Madonna e tantos outros menores são "covers" de si mesmos, peixes fora d'água.
Agora, não. Agora o mundo mudou, quando os Rolling Stones começam a tocar "Not Fade Away", semente negra. Vejo que um enorme gancho vem do céu e nos une a eles, todos debaixo da tempestade. Para os Rolling Stones, nós não somos os "outros", nem eles são os únicos. Sua tradição demoníaca é falsa. Ali estão os românticos heróis dos anos 60 cantando na chuva, ali estão nossos irmãos, pessoas generosas e heróicas que não andam em cabines de plástico protetor, nem fogem de nós com desdém.
Há nos Stones um visível afeto pelas massas. Dinheiro não esgota o assunto. Eles cantam também para não morrer, eles querem nos passar alguma coisa para além de seus egos triunfantes. Para além dos aplausos, há uma utopia ali.
Só isso explicaria a heróica resistência a três horas de temporal, sem um ríctus de mau humor que os closes do telão de cristal líquido revelariam, sem um momento de mecânico egoísmo nestes senhores, que cantam há 32 anos (quanto ainda aguentarão?) e que estão aí na nossa frente, celebrando uma revolução vitoriosa.
Estranha coisa esta grande cobra voltada sobre si mesma, este meganegócio capitalista se denunciando como um corpo exibindo seus erros tatuados. A máquina do mundo se autodecifra nos Rolling Stones, um dos poucos momentos onde esta utopia de massas se realizou, momentos como "Apocalypse Now" ou até dos próprios Beatles, mas aí pela propagação de um sonho lírico de paz.
Mas não é denúncia nem subversão de nada o que eles trazem. Não é conceito; é matéria. É o outro lado do Mal que eles mostram e provam; mostram a cobra e mostram o pau. É o Bem que o mal do mundo segrega, é a Razão que o progresso da loucura deixa cair na arte, é a reflexão que sobra sem querer.
É um bolo de 30 anos que eles nos oferecem, um bolo do Bem feito de Mal, como aquele bolo de aniversário do "Let It Bleed", o presente que ganhamos ao fim desta longa viagem escrita em seus rostos "ravagés", no sorriso melancólico de sabedoria de Charles Watts, no "cold turkey" (a síndrome de retirada) de Keith Richards com seus olhos cansados de tudo que não o satisfez, e que vemos na recusa atlética de envelhecer de Mick Jagger.
Que filósofo viveu e se gastou mais que estes homens que atravessaram o túnel do consumo, através do sexo, dos milhões de dólares, dos aplausos absolutos, da desmaterialização total do indivíduo? No entanto, eles não enlouqueceram, contra a vontade do mundo que matou Marilyn, Jimi, Joplin e que dissolveu os Beatles na vagina de Yoko Ono. Eles chegam do outro lado com a paródia de si mesmos nas mãos, sábios e fraternos conosco, a população de excluídos do baile mundial que somos.
Os Rolling Stones são também de um Terceiro Mundo. Saíram de um ovo de múltiplas exclusões: a música negra, a fixação na batida do blues, o rancor como partida, o veneno contra o Bem instituído, sementes proletárias da cidade onde nasceram, o diabo contra Deus. E de tudo isto fizeram uma vitória no Mercado, onde todas estas propostas costumam fracassar.
A presença dos Stones nos dá a sensação de uma grande relevância. Alguma coisa de muito importante aconteceu ali. Num mundo onde tudo desaba em insignificância, este sentimento é raro. E, olhando em volta nas arquibancadas, vemos que eles estão no fim e no topo de uma "história anterior", uma história psíquica do século 20, uma história que se acumula dentro da carne das pessoas, se entranha em nossas vidas.
Está ali pulsando no meio da banda uma idéia de liberdade muito mais ampla que qualquer esquematismo político. Matthew Shirts, o antropólogo da Vila Madalena, me diz: "Eu fui educado pelos Rolling Stones". Esta educação sentimental está visível nas pessoas que mudam ao ouvi-los nos últimos 30 anos.
O palco se acendeu em mil luzes, nas telas se projetaram línguas flamantes, mas em nenhum momento houve qualquer gosto "camp", nenhuma monumentalidade "para massas". Não havia nenhum clima de grandiosidade fascista ou ritualismo místico; apenas um grande lixão tecnológico transcendental.
Ao contrário, a tecnologia estava toda montada com ironia em direção às forças da magia primitiva (desfile de símbolos rupestres nos telões, mandalas) ou faziam uma desmontagem crítica das imagens da modernidade.
O palco aceso era uma "montanha de Hegel", escrevi ontem, pensando no "espírito querendo se libertar da finitude". Claro que é palhaçada invocar erudição para falar de um show de rock. Mas este transcende a coisa e vira um evento em que os conceitos vão correndo atrás em desespero, tentando encaixar interpretações. Adorno, que não reconheceu nem o jazz, se disfarçaria de pipoqueiro ali no Pacaembu, diante da genialidade do fato.
Os Stones são modernistas, e a emocionante beleza desta esperança derruba o mundo envolto em cinismo. Mas esta coisa política que sentimos neles não tem a superficialidade de um John Lennon, que demorou dez anos para gritar "power to the people". Não se trata de desobediências. A coisa dos Stones é afirmativa, é uma luta contra a traição à natureza.
Na "nova ordem criminal" continua a guerra milenar entre a caretice e a liberdade. O mundo nos quer cada vez mais obedientes, produtivos, frios. Os Stones são quentes. Juntos a Bob Dylan, são os últimos exemplos vivos dos que ajudaram a corroer os reacionários. E sua "revolução" (palavra pouca) é muito mais profunda e nunca vai sair de moda, pois é pulsão de vida, rebeldia pelos nossos direitos naturais animais. Os Stones lutam contra a extinção de nossa animalidade pulsante.

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