São Paulo, domingo, 1 de outubro de 1995
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Perdedores globais

ROBERT KURZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

A ciência econômica encontra-se numa profunda crise. De fato, seus conceitos não correspondem mais à realidade. O próprio nome da disciplina já o diz: "economia
nacional "(1). A palavra de ordem hoje em dia é "globalização" -globalização dos mercados, do dinheiro, do trabalho. É claro que o mercado mundial existe desde o século 16, mas a economia de mercado moderna cresceu sobretudo dentro do espaço funcional das "nações" criadas no século 18: com base no vultoso estoque de capital nacional, surgiram Estados nacionais dotados de sistemas jurídicos nacionais, infra-estrutura etc. O mercado mundial era visto como "comércio externo" e restringia-se a um plano secundário. Tal processo, que marcou o surgimento de novas nações e economias nacionais, estendeu-se também pelo século 20 e impregnou sua história.
Embora nossas idéias sociais e nossos "sentimentos políticos" ainda façam referência ao espaço histórico das nações, essa é uma realidade que pertence ao passado -pelo menos em termos econômicos. A partir da década de 80, um novo sistema de coordenadas surgiu com uma rapidez impressionante, impulsionado pelos satélites, a microeletrônica, a nova tecnologia em comunicação e em transportes e pela queda dos custos energéticos: para além dos limites nacionais, surgiu um mercado único e global.
Tudo passou a ser negociado a qualquer momento e em toda parte: dívidas do Terceiro Mundo (brady bonds), autopeças, mão-de-obra barata, órgãos humanos. A globalização produziu novos fatos, mas tanto a política quanto a ciência econômica permaneceram apegadas a seus velhos conceitos e teorias: o estudo da "economia mundial" ainda não faz parte do currículo universitário.
Mas qual foi, de fato, a mudança fundamental? O mercado mundial devassou as entranhas da economia nacional e sua língua alcançou, por assim dizer, a última das aldeias nos confins do mundo. Desde o início do século 20, a exportação de mercadorias foi incrementada pela exportação do capital. Ford não exportou apenas automóveis dos Estados Unidos para a Alemanha, mas também construiu nesse país uma fábrica para o mercado alemão. A Volkswagen, por sua vez, investiu nos Estados Unidos para suprir a demanda interna norte-americana. Assim nasceram as empresas multinacionais, mas nem por isso a coesão das economias nacionais foi posta em questão.
Sob a forma do mercado de câmbio europeu, o sistema de crédito emancipou-se do controle exercido pelos bancos nacionais. Um especulador alemão pode operar com dólares no Japão; uma empresa japonesa pode tomar empréstimos em marco nos Estados Unidos. O mesmo vale para a produção: uma mercadoria que será vendida por uma empresa alemã no mercado alemão pode ser elaborada na Inglaterra ou no Brasil, montada em Hong Kong e o produto expedido do Caribe.
A partir da década de 60, o comércio mundial expandiu-se com maior rapidez do que a produção mundial, e a aparente autonomização do comércio ganhou novo alento no início dos anos 80. Tal fenômeno foi resultado da globalização: assim, por exemplo, a produção das "fábricas de montagem" japonesas na América Latina e na Europa -cuja única tarefa é montar componentes semiprontos, com a utilização mínima de produtos locais- aparece como exportação do México para os Estados Unidos ou da Inglaterra para a Espanha. Em tais casos, na verdade, não se trata de exportação ou importação de bens de consumo ou investimentos entre diversas economias nacionais, mas de uma nova divisão de trabalho dentro das próprias empresas multinacionais.
A repartição das funções produtivas não se acha mais concentrada num único lugar, mas difunde-se por vários países e continentes. Todos os componentes do processo produtivo e do sistema financeiro perambulam pelo globo. O mercado consumidor também teve de expandir-se por todo o mundo, pois quanto maiores os investimentos em tecnologia avançada e quanto maior a racionalização por meio da "lean production", tanto maior é o desemprego e tanto menor o valor da força de trabalho e do poder de compra nacional.
A concorrência, portanto, exige ao mesmo tempo o marketing global e o "global outsourcing", sempre em busca de custos mais baixos e maiores vendas -não importa em que região do mundo. A revista especializada alemã "Wirtschaftswoche" formulou tal pensamento nos seguintes termos: "Produzir onde os salários são baixos, pesquisar onde as leis são generosas e auferir lucros onde os impostos são menores".
Desse modo, até mesmo administradores de empreendimentos médios tornam-se aos poucos "global players". O capital das empresas não integra mais o estoque de capital nacional, mas se internacionaliza. E isso é apenas o início de tal processo. Segundo declarações da empresa de consultoria McKinsey, cerca de 5% do capital "alemão" está globalizado, número que deverá atingir em breve os 25 ou 30%. Com isso, altera-se também a orientação estratégica. A fidelidade à economia nacional vai por água abaixo. Não há mais nenhuma estratégia de desenvolvimento econômico.
A direção da empresa alemã Siemens, por exemplo, reuniu-se recentemente em Cingapura e decidiu que sua mais nova geração de chips não será produzida, como estava previsto, na cidade de Dresden (antiga Alemanha Oriental), mas sim na Escócia. O Deutsche Bank, para desgosto do Banco Central alemão, transferiu seu setor de investimentos de Frankfurt para Londres. A Mercedes-Benz não publica mais seu balanço em Stuttgart, mas em Nova York, e o mais novo lançamento automobilístico da empresa não será montado no sul da Alemanha, mas na França.
As próprias indústrias fornecedoras transferem sua produção para Portugal ou Polônia, para a República Tcheca ou para o sudeste asiático; no país de origem permanece apenas o setor de finanças, mas em breve a própria contabilidade será feita por alguma empresa indiana. A filosofia da marca de qualidade desloca-se igualmente dos limites econômicos nacionais para um nível mais globalizado: não mais "Made in Germany", mas "Made in Mercedes".
As consequências, sem dúvida, são absurdas e perigosas. A economia privada avança todos os limites, mas o Estado permanece -de acordo com sua natureza- restrito às fronteiras territoriais. O Estado é cada vez menos o "capitalista ideal" (Marx) com voz de comando ativa sobre o estoque de capital nacional. A velha "economia política transformou-se em "política econômica". Quando a política deseja impor limites à ação desenfreada do mercado, as empresas globalizadas logo ameaçam com um "Êxodo do Egito". Isso vale também para as imposições ecológicas. Proteger os mananciais hídricos? Poluição do solo? Que tal repetir tais perguntas no México, onde se permite que o gado definhe aos montes, sem que os políticos dêem a mínima importância? Depois nós voltamos a conversar sobre a questão dos custos de produção...
Com a diminuição da competência do Estado, desfaz-se também a contradição entre "libertação nacional" e "imperialismo". A maioria dos regimes fundados na acumulação nacional fracassou, pois foi incapaz de financiar os custos de capital inerentes a um desenvolvimento industrial autônomo, pressionado pela globalização. Grande parte das indústrias estatais, consideradas pouco lucrativas pelos padrões internacionais, é desativada ou privatizada, isto é, comprada geralmente por empresas globalizadas.
A curto prazo, talvez seja possível com isso sanear as contas públicas. Mas o capital estrangeiro não visa mais ao desenvolvimento do país como um todo e é preciso atraí-lo com a redução de impostos e outras regalias. O resultado, porém, é a diminuição do número de empregos, causada pela racionalização, a evasão dos lucros e a ausência de garantias para os investimentos.
Por outro lado, contudo, os antigos Estados imperialistas não demonstram mais interesse na anexação territorial ou nas "zonas de influência". Afinal de contas, de que servem as enormes regiões assoladas pela pobreza, cuja população não pode mais ser utilizada? Toda "zona de influência nacional representa um buraco negro improdutivo e de custos elevados. As "zonas de rentabilidade", porém, que se alteram quase diariamente, estão distribuídas como um eczema ao longo do globo, e nem mesmo os Estados poderosos são capazes de exercer um controle efetivo sobre tal economia difusa.
Dessa maneira, as diferenças entre os países pobres e ricos são lentamente niveladas, mas não em termos do bem-estar geral. Em toda parte impõe-se a mentalidade voltada para a exportação, ou seja, a integração direta e sem entraves ao mercado mundial, ao passo que simultaneamente um número cada vez menor de pessoas consegue integrar-se economicamente a esse mesmo mercado. Zonas de livre comércio, como o Nafta, a Comunidade Européia ou o Mercosul, só tendem a agravar o problema, pois geralmente aceleram a desintegração da economia nacional e promovem a união multinacional de pequenas ilhas de desenvolvimento. Da teoria do caos conhecemos o "princípio da auto-semelhança": determinadas estruturas se repetem em todas as escalas globais.
O sistema de mercado global é "auto-semelhante": num futuro próximo, em cada continente, em cada país, em cada cidade existirá uma quantidade proporcional de pobreza e favelas contrastando com pequenas e obscenas ilhas de riqueza e produtividade. Os Estados, devido à falta de recursos financeiros, abandonam à sua própria sorte uma parcela cada vez maior da população, roubando-lhe o direito à cidadania. As autoridades, enfim, buscam apenas manter o controle militar sobre os setores "extraterritoriais" da miséria e da barbárie.
É evidente que o resultado desse tipo de globalização não é nada auspicioso. Uma economia global limitada a uma minoria sempre mais restrita é incapaz de sobreviver. Se a concorrência globalizada diminui cada vez mais o rendimento da produção industrial e assola numa proporção ascendente a economia das regiões, segue-se logicamente que o capital mundial minimiza seu próprio raio de ação. A longo prazo, o capital não poderá insistir na acumulação sobre uma base tão restrita, dispersa por todo o mundo, do mesmo modo como não é possível dançar sobre uma tampinha de cerveja.
Além disso, a globalização acarreta uma nova contradição estrutural entre o mercado e o Estado. De fato, por meio da internacionalização do estoque monetário, o capital foge ao controle estatal e diminui as receitas públicas. Por outro lado, o capital globalizado depende mais do que nunca de uma infra-estrutura funcional (portos e aeroportos, estradas, sistemas de transporte e comunicação, escolas, universidades etc), que, como antes, deve ser organizada por iniciativa estatal. A globalização, podemos concluir, tira do poder do Estado os meios financeiros imprescindíveis para o próprio desenvolvimento da globalização.
Entretanto, são sobretudo as reações desesperadas dos homens "cuspidos" do mercado que desencadeiam a crise do novo sistema mundial. Os custos da "segurança" crescem em proporções astronômicas. Os antigos países imperialistas, numa economia globalizada, não podem mais declarar guerra uns aos outros, mas são obrigados a mobilizar conjuntamente uma "polícia mundial" contra os perdedores globais, a fim de garantir condições sociais condizentes às ilhas de riqueza. Talvez essa nova guerra seja ainda mais dispendiosa do que a antiga Guerra Fria. Por toda parte, a máfia começa a usurpar os atributos da soberania estatal.
Ditaduras truculentas, como o regime de Saddam Hussein, tornam-se imprevisíveis. O fundamentalismo religioso inunda o mundo com seu terrorismo. Em diversos países surgem movimentos militantes, carentes de qualquer perspectiva, denominados em geral "nacionalistas", mas que na verdade são "etnicistas" e na maioria das vezes separatistas. Ao contrário dos antigos movimentos nacionalistas burgueses, da Revolução Francesa ao Terceiro Reich, não se trata agora da integração nacional, mas sim da desintegração econômica das nações. A globalização de uma "economia da minoria" tem como consequência direta a "guerra civil mundial", em todos os países e em todas as cidades.
Podemos apenas perguntar com voz abafada o que é preciso fazer para barrar essa evolução. Um retorno ao mundo das economias nacionais é improvável. Paradoxalmente, no entanto, as portas da política ainda permanecem abertas ao Estado nacional. Com base nessa contradição, será possível superar as nações de um modo não apenas negativo? É viável a criação de territórios "pós-nacionais" e campos operacionais situados além do mercado e do Estado?
Sob o jugo da economia nacional, a nível local e regional, alguns países desenvolveram novas formas cooperativas de administração e abastecimento autônomos, capazes de suprir as necessidades básicas do homem. Mas os recursos para tanto são absolutamente insuficientes. Como exemplo podemos citar o movimento encabeçado por Betinho no Brasil, as ONGs e algumas associações de renome mundial, como a Anistia Internacional e o Greenpeace, que não têm propósitos comerciais nem são vinculadas ao Estado.
Entretanto, nenhum desses grupos possui até agora competência social ou econômica; ocupam-se apenas com as consequências negativas da globalização, sem questionar o sistema econômico como um todo.
E qual a função da teoria, do pensamento crítico internacional? A "paz eterna", proclamada por Kant no limiar da era moderna como a paz entre as nações independentes, foi tão incapaz de cumprir sua promessa quanto o "internacionalismo proletário" dos movimentos socialistas. Nos dias de hoje, parece que a filosofia capitulou definitivamente ante à barbárie do mercado total. Será que a comunicação internacional ficará resumida, por fim, aos lançamentos contábeis dos mercados financeiros globalizados? O pensamento inconformista deve ser tão ágil quanto o dinheiro fugidio. O que nos falta, na verdade, é a globalização de uma nova crítica social.

NOTA
1. "Nationalökonomie" em alemão. Termo que abrange, de modo geral, a ciência econômica ou a economia política de uma nação

Tradução de JOSÉ MARCOS MACEDO

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