São Paulo, segunda-feira, 2 de outubro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O aliado de Voltaire

MILTON MEIRA DO NASCIMENTO

Voltaire - Nascimento dos Intelectuais no Século das Luzes
Pierre Lepape
Tradução: Mario Pontes
Jorge Zahar Editor, 312 págs.
R$ 25,00

Sempre me impressionou a imagem de Voltaire deixando Paris numa belíssima carruagem de seis cavalos e passando pelos portões da cidade com os cumprimentos da guarda, a 2 de junho de 1778. ``Boa noite Sr. Voltaire"! Nada de anormal, se ele não estivesse morto, embalsamado, sentado ao lado de um lacaio, para que ninguém desconfiasse de nada. Esse quadro é emblemático da trajetória de um monstro sagrado da República das Letras. Qual o motivo de tanto mistério para enterrar um homem de 84 anos, que alguns meses antes tinha obtido a consagração como um verdadeiro rei, em Paris?
Num universo marcado pelo brilho exclusivo do monarca absoluto, que determinava o espaço do saber, estabelecia o que devia ou não ser lido pelos súditos, controlava o culto religioso, impunha-se pela exigência do segredo e reivindicava para si o direito da palavra sobre todos os negócios do Estado, quais as possibilidades de um escritor sobreviver, se destacar, reivindicando um espaço autônomo, livre das amarras do poder absoluto e do controle eclesiástico? Muito pouca ou quase nenhuma. E, no entanto, o velhinho, que saía de Paris na noite de 2 de junho, havia conseguido realizar essa proeza. Na carruagem estava um grande conquistador, reconhecido pelo público parisiense, que lhe prestara honras de rei, para furor dos homens da corte.
``Voltaire, o Conquistador" -é esse o título original da obra de Lepape, que nos conduz, num fôlego só, pelos caminhos tortuosos e escarpados da conquista de um território autônomo para os homens de letras, sob o comando de um general irrequieto, franzino, nervoso, irritadiço, maroto, capaz de fazer qualquer coisa na sua luta obstinada pela criação e consolidação da República das Letras.
No século 18, quem quisesse aventurar-se na carreira de homem de letras deveria, em primeiro lugar, ser aceito no seleto meio intelectual da monarquia, o que não era muito difícil para os bem-nascidos da nobreza. A dissidência, nesse meio, custava caro e não estava nos horizontes de ninguém aventurar-se por uma trilha que conduzisse à independência. Os filhos da burguesia, que aspiravam a essa carreira, eram imediatamente dissuadidos por seus pais, pois estavam condenados a passar fome. Não era nada fácil conseguir uma pensão e ser protegido do rei para exercer aquela nobre profissão.
Voltaire, Rousseau e Diderot são exemplos daqueles que, vindos da burguesia, conseguiram transpor, a duras penas, a barreira que separava o mundo das letras do comum dos mortais, meros súditos espectadores de uma cena que se desenrolava ao longe.
Poderíamos simplificar um pouco as coisas, dizendo que a luta pelo poder da burguesia contra a nobreza, que já se desenvolvia há muito tempo no plano econômico, com o crescimento da atividade mercantil e da força do mercado, agora se travava no plano do saber e, no final do século, iria aparecer sob a forma da luta política aberta, na revolução de 89.
Lepape, no entanto, mostra-nos um quadro muito mais complexo que uma análise rápida e mecênica do mundo das letras poderia oferecer. Vejamos o caso de Voltaire. Queria ser reconhecido oficialmente como escritor. ``Queria a corte, as honrarias, e já que havia um camareiro-mor, um criado-mor, ele gostaria de ser o escritor-mor do rei. Mas, ao mesmo tempo, experimentava o sentimento difuso, ainda não formulado, de que sua arte merecia mais que uns guizos dourados" (pág. 54). Fez de tudo para conseguir o seu espaço, dentro das regras do jogo: a proteção da corte de Versailles, de Frederico 2º, rei da Prússia, de Catarina, da Rússia. De Versailles ganhou várias interdições de suas obras e a proibição de viver em Paris. A amizade com Frederico custou-lhe a prisão na fronteira.
Após tantos desencontros com o poder real da França, que se recusava a mostrar o mínimo de boa vontade em relação àquele inimigo declarado da religião e, por isso mesmo, do próprio poder estabelecido, depois de algumas passagens pela Bastilha, depois de ter tantos livros seus proibidos pela polícia, ei-lo, no fim da vida, criando o próprio império, no castelo de Ferney, na divisa da França com a Suíça, refúgio de onde mandava os torpedos contra seus inimigos.
A trajetória de Voltaire deve ser analisada à luz das grandes transformações que ocorreram no mundo das letras. Fazia parte do novo cenário o aparecimento de um público capaz de julgar o que se escrevia, de aceitar ou de recusar os textos a ele apresentados. Essa tarefa cabia, até então, aos censores, aos responsáveis pela produção do saber sob a proteção real. Se Voltaire, desde o início da carreira, procurava o reconhecimento da corte, não era só para obter aval para seus escritos, mas também para, de lá, arremessar suas flechas com maior segurança. Para ``esmagar a infame", o furor do fanatismo religioso, as superstições e o charlatanismo era preciso ter um aliado forte e muita autoridade. O público já começava a mostrar sua força e Voltaire soube perceber que ali estava seu maior aliado.
Além disso, com o crescimento do público leitor, abria-se o campo para uma nova mercadoria, o livro, cuja difusão podia dar algum dinheiro aos escritores. Muito pouco, em comparação ao que ganhariam os editores. Voltaire não gostava nada de viver da venda de livros e considerava mesmo aviltante que candidatos a homens de letras ficassem correndo atrás dos editores para publicar seus livros. A arte nobre de escrever, como costumava dizer, não podia rebaixar-se tanto, submetendo-se às leis do mercado. Fazia críticas duras a Diderot, por transformar-se num mero operário da ``Enciclopédia", e a Marivaux, por desperdiçar seus talentos como redator de jornal.
Submeter-se ao público? Voltaire fazia questão de dizer que não era a qualquer público, mas apenas ao das pessoas de gosto, ao público esclarecido. O vulgo só se tornaria ``um público legítimo sob o governo dos homens cultos" (pág. 108). Sempre atento às transformações do século, percebeu logo que, para captar o público, era preciso falar a linguagem deste. O sucesso do ``Cândido" estava inscrito nessa nova estratégia. Ao invés de ganhar a opinião pública com livros volumosos, preferiu dirigir-se a ela com um texto pequeno e num gênero até então considerado menor, o romanesco. No caso Calas, fez de tudo para sensibilizar a opinião pública, cativando-a pela emoção. O importante era tornar público o erro judiciário, que havia levado à morte o protestante Calas, e denunciar o horror do fanatismo.
Na fortaleza de Ferney, tendo como maior aliado a opinião pública, sem precisar dos favores de ninguém, cercado de admiradores, às vezes de curiosos que ficavam horas a fio esperando o seu aparecimento, Voltaire havia encontrado o paraíso. Encenava suas peças de teatro, recebia intelectuais ilustres e discutia estratégias de lançamento de obras, que, com certeza, seriam proibidas. Mas quem, do mundo das letras, vindo da burguesia, podia, no século 18, comprar uma Ferney? Talvez só mesmo Voltaire, que havia investido sua herança em ações, em empréstimos a juros, em aplicações nem sempre bem explicadas. Lá ele conseguira até criar o bicho da seda e ganhar algum dinheiro vendendo tecidos para as madames de Paris e para os sultões das Arábias. Independência para a República das Letras, liberdade intelectual? Só com muito dinheiro! Até Rousseau, se quisesse, poderia ``comer um pouco de capim no meu pasto".
O mistério daquela estranha saída do patriarca de Ferney, na noite do dia 2 de junho, de Paris, tem pois uma explicação. Ali não estava apenas o símbolo da ilustração, da autonomia do saber, da luta contra todas as formas de barbárie provocadas pelo fanatismo religioso e pela prepotência do Estado. Delineavam-se também as formas de apropriação daquele símbolo. Todos os protagonistas do espetáculo, os amigos de Voltaire, os membros da corte, os representantes do clero e o público estavam envolvidos naquela decisão. Para a corte, seria uma afronta enterrá-lo como rei, e nem tinha permissão de estar em Paris. Para os amigos, um acinte impedir que lhe fossem conferidas honras fúnebres, dentre as quais se incluía uma sepultura decente. À cúpula do clero, que glória se Voltaire se retratasse e confessasse os seus pecados! Mas como não o fez, não se podia conceder a ele as honras eclesiásticas. Como reagiria a opinião pública se soubesse que seu ``rei" seria jogado numa vala qualquer, como se fazia com os infiéis? O acordo foi surpreendente: Voltaire não morreu em Paris. Nosso herói teve de morrer na clandestinidade e, quem diria, com seis missas cantadas por vigários que disputavam o altar para prestar-lhe as últimas homenagens, na madrugada do dia 3 de junho, na pequena abadia de Sellières, a algumas léguas de Paris.

Texto Anterior: AQUILO QUE ESCAPA
Próximo Texto: O Leviatã de duas caras
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.