São Paulo, terça-feira, 3 de outubro de 1995
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Nossas mãos assassinas matavam milhões

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A bronha, a punheta, "dar uma coça na miúda, "estrangular um pele-vermelha". A bronha vicejava em meio às aulas de religião naquele colégio de padres.
No fim dos anos 50, a única preocupação de Deus conosco parecia ser a bronha. "Será possível?", eu me perguntava, "que Deus esteja tão preocupado com nossos pobres pintinhos?"
Eu tremo ao ver que querem impor as aulas de religião aos colégios brasileiros. Logo agora que fica patente a absurda visão da igreja em relação à Aids, ao controle da natalidade, ao aborto, ao celibato dos padres, em suma, ao tema central da vida: o sexo.
Não se pode usar camisinha, não se pode usar pílula, padre tem de se esvair em transcendentais delírios nos claustros ou então papar beatas na doce prática da hipocrisia, enquanto o papa delinquesce vagando em solidão pelo Vaticano e Edir Macedo gargalha.
"Eu pratiquei o vício solitário..." Era assim que mandavam a gente sussurrar nas sombras da confissão (por que tenho saudades daqueles confessionários escuros, do hálito almiscarado do padre Barreto, da minha terrível solidão de menino jesuíta?).
"Quantas vezes praticaste o vício solitário? ("masturbação é uma feia palavra bombeadora que veio depois.) "Vício solitário" continha uma tristeza doce e humilhante que o sexo perdeu hoje em dia.
Lembro dos jovens padres tontos de tesão pelas mães dos meninos, que iam ao colégio com toaletes provocantes, muito batom, cabelos altos, todas imitavam a Ingrid Bergman ou a Jane Russell, e os padres entravam em vertigem, eu via, via, do meu canto de menino. Que faziam eles para afastar o pêndulo sinistro do vício solitário?
Minha fé vacilava. Será possível que esse reles prazer de garoto virgem fosse tão criminoso assim? Já não bastavam as mulheres e meninas, todas inatingíveis naqueles tempos? O sexo era um crime. Mas era irresistível.
E Deus e suas sotainas negras perdiam feio para Angelina Martinez, (a mulher mais "boa" do mundo, em todos os tempos, quantos bronheiros da época estarão me lendo para testemunhar?) ou para Virginia Lane, ou para Mara Rubia, ou a divina Norma Benguell, estrela que subia. Minha fé vacilava e eu rezava para ter fé.
O padre Fuffier examinava minhas espinhas como um guarda de fronteira: "As espinhas aumentaram nas férias, hein?..." Eu esfregava "Lugolina" na cara para impedir que as brotoejas delatoras me entregassem.
"Você sabe por quê o vício solitário é um pecado mortal?", perguntava o padre. "Porque cada vez que você o pratica, são milhões ("milhõessss!", ele repetia) de seres humanos que poderiam nascer e que morrem ali na vala comum do papel higiênico ou na cloaca dos esgotos!".
Minha culpa era total. Além de odiado por Deus, além da humilhação de ver as meninas do colégio Jacobina passando intocadas com suas bundinhas lindas e pequenos seios, além de contemplar com desespero os primeiros biquínis em Copacabana, eu era um assassino de milhões!
Eu era uma espécie de Hitler sem grandeza, um reles criminoso covarde que, além do mais, não comia ninguém. E entre lágrimas, com a culpa na alma, matei milhões de homens, destruídos no banheiro, nações inteiras continuaram a ser exterminadas por minha mão assassina.
Minha fé quase se apagava, como uma vela pobre. O padre Barros berrava no púlpito: "Tua alma vai para o inferno queimar no fogo... por toda a eternidade!"
"Eter-ni-daaaaade!" ecoava pelos espaços siderais e eu questionava a doutrina. Deus me parecia violentíssimo, nos obrigando a queimar para sempre, por nada.
"Mas, padre, o sujeito passa a vida puro e sério. No último dia, antes de morrer, falta a uma missa. Vai para o inferno?" "Por toda a eternidaaaaade..." ecoava o bom padre Barros, implacável.
E aí surgia a pergunta agnóstica que acabava com a fé dos garotos:
"Deus é infinitamente bom?", perguntávamos. "Sim, infinitamente".
"Ele sabe tudo que vai acontecer?" "Sim...", respondia o padre, já desconfiado.
"Então, se ele sabe que fulano vai pecar e vai para o inferno, por que ele cria o cara?" Nenhum padre me respondeu essa questão atéia, até hoje.
Falavam em "livre arbítrio" etc... Mas nada. Em minha fé resistia, mesmo assim. Eu me perdia em infinitas discussões metafísicas com amigos diante do mar, minha alma se evolava para o espaço sideral, já que as doces mulatas do Rio não eram para os meus beiços.
Santo Deus, que moleza hoje esses "mauricinhos" com verdadeiros haréns de menininhas de família, que "ficam" em festas. Antes da pílula, ninguém dava. O pânico não era a Aids, era a gravidez. A gravidez solteira era uma doença venérea.
Nos anos 50, muito se exigia dos punheteiros. Não havia ainda as revistas de sexo, apenas vagas suecas em monocromia sépia deitadas em "Saúde e Nudismo", e fora o grande Carlos Zefiro, criador da masturbação "art deco", nada tínhamos.
As fantasias eram narrativas. Pensávamos em professoras, nas mães dos outros. Os orgasmos eram literários: tinham personagens, conflitos, "grand finale". Punheta era texto; hoje é videoclipe.
Com as modernas revistas pornôs, diminuiu muito a imaginação criadora dos descascadores de banana. Nossas fantasias sempre ficarão aquém da oferta da "indústria da sacanagem". Somos masturbados por ela. Tanta liberdade, de fato, nos programa.
Um dia, chegou um padre novo, "moderno", diziam. Esperança. O padre falava uns palavrões, falava em esperma, masturbação.
Era jovem e forte (muitos anos depois, vi-o sem batina vagando pelo Posto 6). Jogava futebol conosco, brigava.
Ótimo, minha fé se fortaleceu, era possível uma fé mais democrática com o padre ponta-direita. Havia um Deus mais solar, não tão negro e triste como queria o padre Barros, por toda a "eter-ni-daaade!...."
Até que um dia, o padre (nos falava de livros, filmes) nos contou uma das histórias cristãs mais belas (a seu ver) sobre a sexualidade juvenil.
Tínhamos o quê? Uns 13 anos. Pois era a história de um rapaz escoteiro (qual o nome do livro francês, "Estrela da Manhã?") virgem, de 18 anos, forte e bonito que estava fazendo um acampamento no Havaí. Uma tarde, ele sai a cavalo pelas praias desertas galopando, feliz em sua castidade. Aí, resolve parar na areia branca, para descansar.
Eis que... (ouvíamos em suspense) surge uma linda mulher havaiana, seminua, vestida apenas com a saia-de-palha, coberta de flores (o padre caprichava nos detalhes), que se aproxima do nosso herói virgem na areia e começa a dançar a "hula-hula", ali diante dele, sorrindo e se oferecendo. Ouvíamos sem ar, constelados de espinhas.
Eis que nosso herói vai ficando fascinado pela linda havaiana que dança, apaixonado, febril, amolecendo como num sonho (nossa esperança aumentava). Até que a moça morena e cheia de curvas chega bem perto dele, dançando, e lhe oferece os lábios carnudos e vermelhos. Tiritávamos de emoção.
"Foi então que se deu o milagre!", berrava o padre, eufórico. Nosso herói, à beira do colapso, reuniu suas últimas forças e, rezando entre dentes, pulou no cavalo e saiu galopando e chorando para longe da havaiana. "E ficou casto puro!", bramia o padre, "venceu a tentação!". O silêncio foi brutal e desesperado.
Dava para ouvir a indignação e o ateísmo lavrando como fogo entre os alunos solitários em seus vícios. E foi assim. Minha fé morreu ali, naquela sala de aula jesuíta no ano de 1956.

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