São Paulo, quinta-feira, 5 de outubro de 1995
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Depoimento

JOSIAS DE SOUZA

BRASÍLIA - Uma imagem obrigatória de minha infância é a lágrima. Não a minha, que não chorava tanto. Mas de minha mãe. Casada aos 16 anos, ela planejou dois filhos. Aos 22, tinha seis. Vários rios jorraram de seus olhos a cada notícia de nova gravidez.
O debate sobre a esterilização gratuita nos hospitais de São Paulo trouxe à tona os soluços de minha meninice. Eram tempos bicudos. Morávamos em São Paulo, na pouco favorecida Vila Nova Cachoeirinha.
Depois do segundo filho, minha mãe foi de médico em médico. Queria ligar as trompas. ``Fechar a fábrica", como se dizia. Não lhe deram ouvidos. Achavam-na nova demais. Tinha então apenas 18.
Em dado momento, meu pai foi transformar em concreto o sonho de Juscelino. Operário, mudou-se para Brasília. Ou, por outra, mudou-se para o cerrado. Brasília ainda não existia, senão nos rabiscos de Niemeyer.
Ficamos em São Paulo. Sós, mãe e filhos. Víamos meu pai uma vez por mês. Nesse vaivém, veio a notícia da terceira gravidez. As pálpebras de minha mãe verteram um Solimões. E nada de cederem aos seus apelos. Continuou tão fértil quanto desinformada a respeito da maternidade.
Pouco mais de um ano e já esperava o quarto filho. Derramou um Nilo. Não tinha quem a ajudasse. Chorava compulsivamente. Era uma criança cuidando das outras. Ainda assim, não a operaram.
Quando o médico informou-lhe sobre a quinta barriga, resultado de mais uma das visitas de meu pai, entrou em pânico. Mergulhou em depressão ao saber de um detalhe: teria gêmeos. Chorou um Amazonas. Só então ligaram-lhe as trompas.
Logo a família se mudaria para Taguatinga, cidade satélite de Brasília. Criaram-se todos os filhos. Mas sob muita dificuldade e alguma privação. No Brasil de hoje, mais complexo, é desumano submeter uma mulher pobre à saga do gênero.
Por isso, tenho simpatias pela lei que, aprovada pelos vereadores paulistas, acaba de ser sancionada pelo prefeito. Bem verdade que a educação ainda é o melhor método contraceptivo. Mas é preciso reconhecer que, entre nós, a educação não é um direito, mas um privilégio.

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