São Paulo, domingo, 8 de outubro de 1995
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Contestação de um clássico

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

O livro ``Os Sertões", do escritor fluminense Euclides da Cunha (1866-1909), ainda é uma esfinge erguida em plena caatinga. Obra monumental publicada em 1902, tanto fornece lustre permanente ao objeto da narração -a revolta e o massacre do arraial baiano de Canudos entre 1896 e 1897- como impede a aproximação pelos estudiosos contemporâneos dos fatos reais que cercaram o episódio.
Um enigma a ser decifrado é por que tal obra prossegue a desafiar a imaginação dos acadêmicos. O centenário da destruição de Canudos pelas tropas governistas, em 6 de outubro de 1897, promove desde já um furor produtivo entre os euclidianos, famintos de reler o ``livro vingador", como Euclides chamou ``Os Sertões", querendo denunciar o crime cometido pelo Exército ao degolar os jagunços e estuprar as mulheres de uma comunidade arcaica em nome da civilização e da República.
Está programada para até 97 a edição de diversas obras. Três volumes de ensaios chegam ao mercado. A tônica da nova leva de estudos é contestatória. Os intérpretes emergentes parecem querer chamuscar a reputação de Euclides como repórter e estilista. Os euclidianos contra-argumentam. O debate da obra ganha atualidade.
``Canudos, o Povo da Terra", do historiador paulistano Marco Antonio Villa, e ``O Sertão Prometido", do norte-americano Robert Levine, impugnam a interpretação consagrada de Canudos, instituída por Euclides. Afirmam que a narrativa euclidiana representa um estorvo à interpretação histórica. Villa questiona a presença do escritor no local dos fatos narrados. Em ambos os textos, o milenarismo conselheirista surge não sectário, integrado pragmaticamente à economia local.
O terceiro texto, ``A Imitação dos Sentidos", do paulistano Leopoldo Bernucci, professor de literatura hispano-americana na Universidade de Colorado (EUA), vai mais fundo nas acusações. Por meio da análise intertextual, aponta o autor de ``Os Sertões" como talentoso plagiário, impreciso e dono de um estilo pouco original.
Segundo o cânone, o líder religioso cearense Antônio Conselheiro (1830-1897) era o fanático condutor de cerca de 20 mil crentes ao fracasso de uma utopia milenarista e sebastianista. O positivista Euclides tachava Canudos de ``urbs monstruosa", a ``civitas sinistra do erro". Pintava Conselheiro com as cores mais irônicas e macabras. Era o ``grande homem pelo avesso", ``anacoreta sombrio", espécie de condensação do ``obscurantismo das três raças".
Para Levine e Villa, no entanto, as pregações do beato foram o pretexto para o governo massacrar a heterogênea população da cidade. Conselheiro, na nova visão, vira um teólogo de formação católica.
Publicada nos EUA em 1989, a obra de Levine quer abordar Canudos como um choque entre a visão litorânea, a da elite, e a do sertão, tida como atrasada. Relativiza o texto de Euclides e amplia o papel da doutrina do Conselheiro.
Levine demarca ``Os Sertões" como ``crônica apavorante", romantizada, em que o autor não responde questões básicas. Exemplos: por que Conselheiro e seguidores buscaram refúgio num santuário remoto e o que os levou a se exporem a privações.
Villa descarta qualquer vestígio messiânico em Canudos. Quer valorizar questões rejeitadas pelos historiadores, como a da importância da religiosidade sertaneja e a organização do arraial. ``É necessário compreender a experiência conselheirista como um grande momento da história nordestina, no qual os sertanejos lutaram para construir um mundo novo, enfrentando o Estado dos `landlords'."
No apêndice, o professor duvida do talento jornalístico de Euclides escritor e duvida da fotografia do cadáver do Conselheiro, tirada por Flávio de Barros (veja nesta página) por ordem de um oficial em 6 de outubro de 1897. ``A foto pode ser de Manoel Quadrado, o médico do arraial", diz Villa. ``O cadáver não se parece com um homem de quase 70 anos. O jagunço Pedrão e a filha de Quadrado juraram que o cadáver não era do Conselheiro." E arremata: ``Em Canudos não havia os guerrilheiros desejados pelos marxistas, nem fanáticos messiânicos, como querem os euclidianos".
Villa condena o uso da visão de Euclides como argumento de autoridade contra qualquer abordagem racional. Ressalva, porém, a qualidade literária da obra.
O bombardeio à reputação do escritor fica a cargo de Bernucci. Compara a edição definitiva de ``Os Sertões" com um manuscrito com esboço da obra, encontrado na Biblioteca Nacional. ``Euclides escreveu o livro às pressas", conclui. Segundo ele, o autor não citou fontes de que se valeu -as reportagens publicadas à época da campanha militar-, mitigou críticas ao Exército, trocou nomes e arrumou os fatos ao feitio da própria fantasia.
``A Imitação dos Sentidos" é uma obra técnica, bem diversa da leitura agradável dos textos de Villa e Levine. Pela comparação, Bernucci demonstra o vaivém de influência entre Euclides, os repórteres e o monarquista Afonso Arinos, autor do primeiro romance sobre Canudos, ``Os Jagunços", de 1898. Também detecta o automatismo do autor nas descrições de paisagens, em que Euclides transporta trechos inteiros de Hugo, Sarmiento e Renan sem, mais uma vez, mencionar a origem.
Se não é fidelidade histórica nem originalidade literária, o que faz de ``Os Sertões" ainda hoje a obra fundamental sobre Canudos?
Talvez a chave se encontre na nota preliminar do tomo, uma citação do historiador Hypolite Taine. Para este -e Euclides lhe faz eco-, não se trata de copiar fatos, mas capturar a alma, o símbolo subjacente ao acontecimento.
Apegados à verificabilidade, os contestantes de Euclides se esquecem da metafísica e da fantasia, vias diretas para a interpretação do ``livro vingador". De certo modo, a obra reconstrói Canudos e põe militares e jagunços a tropeçar pelo Monte Santo, num ciclo intérmino de desatinos. A vingança está na alegoria de uma partida perdida por dois contendores, no painel da derrocada simultânea de ideais contraditórios: fé e razão.

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