São Paulo, domingo, 8 de outubro de 1995
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Cacos da bomba atômica

RICARDO BONALUME NETO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

O físico Joseph Rotblat, 86, tinha bons motivos para se engajar no projeto Manhattan, de construção das primeiras bombas atômicas pelos EUA. Ele nasceu na Polônia, cuja invasão pelos alemães em 1939 iniciou a Segunda Guerra Mundial e o enviou para o exílio no Reino Unido. Para Rotblat, fabricar a bomba seria uma maneira de apressar o fim da guerra.
Ele via a bomba apenas como uma ameaça que faria o inimigo se render rapidamente. Era desumana demais para ser usada. Os militares americanos empregaram a bomba contra duas cidades japonesas, Hiroshima e Nagasaki, abrindo uma discussão que continua 50 anos depois. Rotblat largou o projeto em 1944, antes mesmo de a primeira bomba explodir, em julho de 1945, num deserto dos EUA.
Ele se alinha entre aqueles que acham que nada justificava a morte de milhares de civis japoneses. Defende que um fator importante no uso da bomba foi a necessidade de impressionar os soviéticos.
Após a guerra, tornou-se um militante contra a corrida armamentista. Foi um dos 11 cientistas que assinaram um famoso manifesto em 9 de julho de 1955, iniciando as conferências internacionais conhecidas como Pugwash. Entre eles, o físico Albert Einstein e o filósofo Bertrand Russell.
Rotblat veio ao Brasil fazer uma palestra a convite da Coppe (Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia, da UFRJ, Universidade Federal do Rio de Janeiro). Ele foi entrevistado pela Folha antes de uma conversa com cientistas.

Folha - Bertrand Russell disse certa vez que os físicos estavam empenhados em encontrar novos modos para explodir a humanidade. Qual foi o seu papel nesse esforço, no projeto Manhattan?
Joseph Rotblat - Eu nunca tentei criar meios de explodir a humanidade, ao contrário, tentei impedir outros cientistas de fazer isso. Eu estava preocupado com a possibilidade de cientistas alemães desenvolverem a bomba. Se tivessem conseguido, Hitler a usaria para vencer a guerra e dominar o mundo. Seria possível impedir isso se tivéssemos a bomba também e ameaçássemos retaliar.
A frase de Russell se aplica mais ao que ocorreu após a guerra, com a corrida armamentista na Guerra Fria. Os próprios cientistas entraram numa corrida, fazendo bombas melhores e tornando as do adversário mais vulneráveis.
Folha - Isso não faz uma piada daquela idéia tão cara aos cientistas de que a ciência e a tecnologia são neutras? A energia nuclear, por exemplo, não teria mais potencial para ser má?
Rotblat - Concordo, a ciência não é neutra. Por muitos anos, cientistas acharam que ela era neutra, que se poderia fazer ciência pela ciência. Mas no mundo real não é assim. O que os cientistas fazem no laboratório poderá ter uma aplicação, para o bem ou para o mal, que afetará nossas vidas. Não se pode dizer que a ciência é neutra, porque dependerá de cientistas decidir como será aplicada.
Alguns cientistas, na América e na União Soviética, traíram os ideais da ciência. Cientistas devem trabalhar para o benefício da humanidade, não para sua destruição. Como a ciência não é neutra, cabe aos cientistas verificar que ela seja aplicada adequadamente. Quanto à energia nuclear, assim como outras descobertas, pode ser usada para o bem ou para o mal. A decisão pertence aos governos, não a cientistas ou militares.
Cabe aos cientistas explicar para os tomadores de decisão quais podem ser as implicações. Isso se aplica também à energia nuclear. Há grande quantidade de boas aplicações, como na medicina, na geração de eletricidade.
Folha - O senhor não acha que os cientistas foram ingênuos em achar que a bomba seria apenas usada como dissuasão?
Rotblat - Foi ingênuo, particularmente porque era tempo de guerra, quando as pessoas param de agir racionalmente e mudam suas atitudes morais. Pensar que os militares fossem ouvir argumentos morais de cientistas foi ingênuo. Certamente no meu caso foi assim.
Mas, uma vez que você aprende com a experiência, você tenta mudar. Passei muitos anos de minha vida numa organização de cientistas cujo trabalho é tentar impedir que isso aconteça de novo.
Folha - O que torna a arma nuclear tão diferente das outras? Na Segunda Guerra Mundial, por exemplo, o ataque incendiário contra Tóquio matou até mais gente que em Hiroshima.
Rotblat - Não se esqueça de que o ataque a Tóquio precisou de centenas de aviões. Basta uma arma atômica para fazer o mesmo estrago. Essa é uma diferença. Além disso, a bomba atômica também mata por radiação. E esse efeito pode afetar gerações futuras. E não fica restrito a um ponto, pode atingir o resto do mundo.
Folha - Muitas pessoas nos EUA acreditam que as bombas atômicas anteciparam o fim da guerra, que tornaram desnecessário invadir o Japão numa grande operação, na qual poderia haver 1 milhão de baixas nas tropas aliadas. Os fatos históricos apóiam essa tese?
Rotblat - Eu diria que não inteiramente. Vamos começar com esse dado de 1 milhão de baixas. Esse número foi usado posteriormente para justificar os fatos. Churchill o usava. Mas, quando você olha o que os generais diziam antes, documentos secretos, havia estimativas de baixas de bem diferentes, algo entre 25 mil e 46 mil baixas. E isso é bem menos que as baixas em Hiroshima e Nagasaki...
Folha - Mas para os americanos o que interessava eram as baixas americanas...
Rotblat - Outros documentos indicam que os japoneses estavam prontos para se render bem antes de as bombas serem jogadas. Mas Truman ignorou as aberturas dos japoneses. Por quê? Há outra razão, demonstrar ao soviéticos o poderio militar americano.
Folha - E movimentos de pessoas como Einstein e Russell? Melhoraram a percepção dos perigos da guerra nuclear?
Rotblat - Imediatamente depois que a guerra acabou havia um movimento forte entre cientistas, nos EUA e no Reino Unido, para evitar que isso acontecesse de novo. Foram criadas entidades fortes, a Federação de Cientistas Americanos, e a Associação dos Cientistas Atômicos do Reino Unido.
Mas os militares venceram, e a Guerra Fria começou com sua parafernália de bombas de hidrogênio e mísseis balísticos. O Pugwash foi um esforço internacional para impedir a corrida armamentista. Levou tempo, mas fomos bem-sucedidos. Cientistas devem ter crédito pelo fim da corrida armamentista. Gorbatchov me disse que foi persuadido por cientistas.
Folha - A direita americana se dá o crédito de ter acabado com a corrida ao levá-la a limites que os soviéticos não puderam alcançar, afetando sua economia.
Rotblat - Essa é uma interpretação, e é muito difícil dizer qual é a correta. Certamente a corrida armamentista ficou tão intensa que arruinou praticamente a economia soviética, mas também quase acabou com a economia americana, criando o déficit da era Reagan.
Nenhum dos dois lados podia ir adiante. Essa política podia ter produzido uma guerra nuclear.
Folha - E o futuro? Com o fim da Guerra Fria o mundo está mais ou menos seguro?
Rotblat - Nos termos dos acordos Start entre as superpotências, ainda existirão 15 mil ogivas nucleares no ano 2003. É um bocado. Ainda é preciso trabalhar para reduzi-las. Mas, mesmo com todas as armas destruídas, o perigo ainda existe. Enquanto pessoas usarem guerras para resolver disputas, armas nucleares poderão ser reconstruídas. Deve-se lutar para eliminar não só o risco de guerra nuclear, mas de toda guerra.

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