São Paulo, segunda-feira, 9 de outubro de 1995
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Rodrigo, 17, pede educação após passar 3 anos na rua

FERNANDO ROSSETTI
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA

Rodrigo Vieira, 17, enfrentou na infância a maior parte dos problemas que jogam milhares de crianças brasileiras na rua: família desestruturada, escola autoritária, carência de espaços de lazer e falta de perspectiva profissional.
``Caiu nas ruas" de Belo Horizonte (MG) aos 12 anos. Lá aprendeu a roubar, se drogou e foi preso várias vezes. Com um histórico de pequenas infrações, foi encaminhado ao Conselho Tutelar, que é responsável por esses casos.
Hoje é membro da Comissão Nacional de Animação, que organizou o 4º Encontro Nacional do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) -encerrado sábado em Brasília.
Na quinta-feira passada, enquanto um pequeno grupo se reunia com o presidente Fernando Henrique Cardoso, Rodrigo teve o papel de apresentar no Senado as reivindicações do encontro: educação de qualidade e participação de menores nos conselhos de crianças e de adolescentes.
``Totalmente recuperado" -segundo membros do Conselho Tutelar-, de volta à escola, à casa de sua mãe e com um emprego fixo de office boy, Rodrigo contou à Folha a sua história:

Folha - Como foi que você caiu na rua?
Rodrigo - Minha mãe casou de novo e eu não combinava com meu padrasto. Ele me batia muito porque eu fazia bastante bagunça. Aí fugi de casa e fui pra rua.
Folha - Isso foi quando?
Rodrigo - Em 91. Eu não sabia roubar, não sabia fazer nada e passava fome na rua, a princípio.
Folha - Como foi sua vida até os 12 anos?
Rodrigo - Era super legal antes da minha mãe separar. Vivia eu, dois irmãos, minha mãe. Tinha mais união. A gente era super feliz, não faltava nada em casa. Mas aí minha mãe separou do meu pai e houve o desentendimento.
Folha - Você ia à escola?
Rodrigo - Ia. Às vezes eu também matava aula.
Folha - Como era a escola?
Rodrigo - Era uma estadual muito boa. Às vezes a gente fazia bagunça e os professores davam puxão de orelha. Nunca tomei bomba. Quando passei para a 4ª série, comecei a cair na onda dos outros meninos, a matar aula. Às vezes matava aula 2, 3 meses, meus pais descobriam e era fatal. Eles batiam muito. Uma vez cheguei em casa e meu irmão chorava. Meu padrasto bateu nele até fazer fezes nas calças.
Folha - Por que vocês matavam aula? Só por influência dos meninos?
Rodrigo - Também por causa da aula. Os professores pegavam muito no pé. A gente fazia qualquer coisa e eles ficavam hiper nervosos. Aí, a gente matava aula.
Folha - O que é um bom professor?
Rodrigo - É aquele que é super educado com a gente, um professor super legal, que quer ajudar e tem carinho com a gente.
Folha - Você ficou morando na rua quanto tempo?
Rodrigo - Mais ou menos dois anos, dois anos e meio, três. Comecei a andar com outros meninos da rua. Com eles eu aprendi a mexer com drogas, a praticar furtos, bastante coisa ruim.
Folha - Que tipo de furto?
Rodrigo - A gente enfiava a mão no bolso dos velhos, a gente roubava pulseiras, relógios e de madrugada a gente assaltava casas.
Folha - Meninos e meninas?
Rodrigo - É, a gente andava sempre unido. Às vezes a gente saía das nossas quebradas, que a gente chama maloca, e ia dar uma ripa (roubar), arrumar o do almoço e da janta e pra comprar lata de cola e lata de thinner.
Folha - As drogas que vocês usavam eram cola e thinner?
Rodrigo - Às vezes maconha.
Folha - Como era a relação com a polícia?
Rodrigo - Eu já rodei, já fui preso roubando e fui preso também de noite, lá na nossa maloca. Os policiais chegavam e espancavam os meninos maiores, de uma maneira muito rebelde. Aí levavam eles presos e batiam na gente, ``vai, vai embora". A gente saía correndo e ficava na esquina olhando os maiores apanhando até se ensanguentarem todinhos.
Folha - Você foi preso muitas vezes?
Rodrigo - Umas dez. Mas já ouvi casos em que o policial fala: ``Eu vou te pôr na rua hoje, mas amanhã às 4h você tem que trazer um relógio para mim". Aí o menino leva o relógio para ele.
Folha - E as meninas?
Rodrigo - Os policiais levam a gente preso e levam elas também. Às vezes rola até estupro. Faz a maior sacanagem com as meninas. Mesmo os meninos de rua deixam as meninas grávidas. Aí vêm os policiais, batem nelas e elas perdem o filho.
Folha - Entre os meninos tem muita briga também?
Rodrigo - Tem. Quando eu saí da rua, bastante amigos meus saíram comigo. Só que o vício da droga é mais forte, eu acho, para eles. E eles não conseguiram mudar de vida como eu mudei. Tinha saído eu e mais cinco amigos. Desses cinco, três já morreram só esse ano por causa de briga.
Folha - Como é essa coisa de voltar para rua?
Rodrigo - Quando os meninos entram em uma casa, tem comida, tem banho, tem tudo, mas eles não podem mexer com drogas, eles não podem mais roubar, eles têm que pôr na cabeça que têm que mudar de vida. Aí vão outros meninos da rua e chamam, enchem a mente deles, dizem ``agora você tá pedindo arrego, você entrou em uma casa que não tem nada a ver com você. Vamos voltar para a rua, vamos cheirar cola".
Folha - O que fez você não voltar?
Rodrigo - Tive força de vontade. Vi que a rua não é lugar pra gente morar. A rua é pra passear.
Folha - Como é que foi esse processo de você sair da rua?
Rodrigo - Eu estava na maior turma de meninos de rua de Belo Horizonte, chamada graminha. Aí a gente falou ``vamos no Campo do Lazer pegar marmitex pra gente almoçar". Nesse Campo do Lazer trabalhava o pessoal do movimento. Eles falavam ``você não é menino de rua, com essa educação você não merece estar na rua". Aí eles me pegaram e me levaram para fazer uma triagem na Casa Recriando. Lá eu aprendi bastante coisa, oficina de silk screen, costura, cerâmica, marcenaria, eu me sentia muito bem. Aprendi também a largar as drogas, voltei a estudar. Agora eu tenho um trabalho e participo no movimento e na Comissão Nacional de Animação, que é o que mais gosto.
Folha - Como foi que você se envolveu com o movimento?
Rodrigo - O pessoal foi me ensinando o que é educação, o que é o estatuto (da criança e do adolescente). Pensei ``poxa, será que tem um algo mais pra mim estar participando, pra mim estar aprendendo". Aí eles disseram ``tem sim, através do núcleo de base você pode estar aprendendo bastante coisa". E eu aprendi mesmo, aprendi meus direitos.
Folha - O que você acha que é o mais importante para mudar a situação agora?
Rodrigo - Nós queremos educação e a nossa participação nos conselhos (de crianças e adolescentes). Porque a gente quer saber o que o Conanda (o conselho nacional) está fazendo. Eles dizem que o Conanda está resolvendo esse assunto de educação, que está olhando esse negócio de menino de rua, mas a gente não vê isso.

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