São Paulo, segunda-feira, 9 de outubro de 1995 |
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Brasília vive invasão dos sem-telefone
FERNANDO GABEIRA
A jovem prostituta conversa com a amiga debaixo do viaduto. No chão, há estilhaços de vidro e, a poucos metros dali, alguns latões de lixo do restaurante. ``O meu também. Quando abrirem, vou começar a telefonar às seis e meia, para não perder a chance." Discutiam gravemente, como se falassem da bronquite dos filhos ou de mais uma rodada de vacinação contra pólio. Às vezes, seus corpos eram subitamente iluminados pelos faróis e se retesavam à espera do olhar do cliente. Brasília demanda celulares. Todos pareciam precisar de um -motoristas de táxi, assessores, lobistas, corretores, mães aflitas, amantes. E a promessa era de que seriam vendidos por telefone a partir das 7h de sábado. Nesse momento, cerca de 20 mil pessoas já tentavam encomendar o seu e todo o sistema entrou em colapso. Ao longo daquele dia, 350 mil pedidos congestionaram as linhas e, no final, com o eclipse da comunicação eletrônica, muitos foram às ruas para gritar e quebrar as portas da Telebrasília. Conheço muita gente que não quer um telefone celular. Eu também não o queria. Tinha pavor de ouvir o som dos chamados num restaurante e ver várias pessoas se coçando simultaneamente para checar seus aparelhos. ``É para mim, é para você?" Sentia-me um telefonista passivo, mais incomodado que um não-fumante envolto na cortina de fumaça de um bar. Você tenta se concentrar na salada, interrogando-se se corta o pedaço de tomate para levá-lo à boca; de repente, alguém grita ao seu lado: ``Vinte por cento de três e meio. Isso é quanto?" Nesse instante, tomate, pepino e alface saem do foco de sua concentração, abandonados no prato como se fossem restos de feira. Você, sem querer, está calculando mentalmente quanto é vinte por cento de três e meio. Setecentos, porra. Verde e vermelha, a salada reaparece integralmente diante dos olhos e alguém deixa escapar uma nova frase na mesa da esquerda: ``Maria, me diz se há alguma coisa errada comigo." ``É o bigode, sem dúvida é o bigode." Tudo isso é passageiro, como o ir e vir dos garçons renovando as travessas da mesa do self-service. Não pode ofuscar o movimento das massas de sem-telefone que perambulam pelas ruas vermelhas do cerrado em busca de um orelhão. Drummond escreveu que ninguém reconhece o drama, quando ele se precipita sem máscaras. Somos treinados a ver imagens de revolução do princípio do século. Junto com Bertolucci, paramos nas faces sofridas de camponeses que avançam com enxadas e ancinhos na suave luz de outono. Diante dos sem-telefone, somos tão perigosamente indiferentes como Maria Antonieta. Não têm pão? Comam brioches. Não têm celular? Virem-se com os pagers. Nada impedirá que voltem à carga. Hoje pedem telefone, amanhã uma rádio de pequena potência, todos querem ser uma estação móvel, como na caricatura da ``New Yorker" -homem andando na rua, com a mesinha entre as pernas, falando no telefone, fax e computador prontos pra disparar mensagens. O poeta disse também que ao telefone perdemos muito tempo de semear. Mas o que fazer se as colheitas ficaram mais rápidas com a mecanização? Sobram prazos para a interrogação: se os habitantes de Brasília se batem pela comunicação e viveram sempre perto do governo é porque associam um ao outro, ou não? Não se trata de poder para governar o país, mas as próprias vidas. Mães querem saber se a menina tossiu, clientes querem desbloquear talão de cheque, motorista quer combinar viagens, putas querem lembrar o executivo no hotel de deixar a porta entreaberta e pedir uma garrafa de vinho branco. Nossas vidas serão mediadas pelo céu. Pelo satélite mandaremos beijos, abraços e pêsames. Trata-se de uma reforma do ar, uma reforma celeste. Num país onde o telefone não só dá samba, como deu o primeiro samba, a revolta de Brasília não pode passar em branco. Ou todos se comunicam ou todos se trumbicam. A profética frase de Chacrinha fundamenta um programa político para o fim do século. Pedalo com o celular no bolso pela capital do país, onde vejo que o céu azul é bonito e amplo para todos. Miragem? Nesse caso, desculpe, foi engano. Mas, quando 350 mil pessoas tentam passar uma mensagem ao mesmo tempo, sempre se aprende alguma coisa parando para ouvi-las, apesar da péssima qualidade das linhas. Texto Anterior: Jorge Salomão lança primeiro romance Próximo Texto: Fingermann exibe marcas da memória na pintura Índice |
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