São Paulo, segunda-feira, 9 de outubro de 1995
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Terra

DARCY RIBEIRO

O que se chama reforma agrária é tão-só a revisão da lei fundiária, vigente no Brasil há um século e meio. Lei que não reconhece o direito de posse, como ocorre na América do Norte, mas consagra os poderes burocráticos e cartoriais de esbanjar as terras públicas.
O desafio que enfrentamos é reformar essa lei para reverter ao domínio público, como fundo de colonização, toda a imensidão de terras tidas e havidas pelo latifúndio improdutivo, mas não usadas agora por eles, nem utilizáveis em qualquer tempo, tão incomensuráveis são.
A imensa maioria desses latifúndios foi obtida através de grilagens e chicanas cartoriais, sem qualquer base de legalidade ou de legitimidade.
São acatados e mantidos porque a ordem vigente, com seu sistema de elaboração de leis e de garantias de justiça, existe de fato é para manter e consagrar esses privilégios, doa a quem doer.
A Constituição de 1946 determinava que nenhuma propriedade acima de 10 mil hectares teria registro sem autorização prévia e expressa do Senado.
Mas o Senado nunca piou sobre essa matéria. Viu os fundos de Goiás e Mato Grosso serem apossados em enormes glebas. E está vendo o mesmo ocorrer no Pará e na Amazônia, em concessões de centenas de milhares, e até de mais de 1 milhão de hectares, sem jamais se pronunciar.
A única ativa contra esse despautério, que é o responsável principal pela fome e pelo desemprego em que se estiola nosso povo, é a ação dos grupos extralegais, mas legítimos, dos sem-terra, que invadem terras incultas.
Eles já somam milhares e crescem continuamente. No limite, frente à incapacidade da Justiça para coactá-los e contê-los, esses posseiros tendem a aumentar tanto que até podem compelir o Exército a cometer chacinas muito maiores que as de Canudos e do Contestado para garantir o latifúndio.
Fazendo-o agora, sem qualquer disfarce ou apoio, porque a opinião pública urbana já é francamente favorável aos sem-terra.
Não é improvável que os próprios fazendeiros de propriedades produtivas, sentindo-se também ameaçados, acabem por pressionar o Legislativo, o governo e a Justiça para promoverem uma reforma agrária séria e urgentíssima.
Para isso, no plano legal, bastaria incluir um princípio novo na Constituição, em que andam mexendo tanto para nada. Incluir ali que a ninguém é lícito manter a terra improdutiva por força do direito de propriedade.
Acrescentando que lícita ou legítima é a posse do equivalente a quatro vezes a área efetivamente utilizada pelo dono, voltando o restante ao domínio público.
Se nada for feito -nem a chacina nem a reforma- os sem-terra resolverão o problema. Engrossados pelas massas urbanas, ainda ruralizáveis, eles são a força irresistível de que necessitamos para meter o povo na história do Brasil.
Dizem os idiotas que não adianta fazer reforma agrária, porque sem muita assistência técnica e muito subsídio o pequeno lavrador não conseguirá nada.
É mentira. Onde prevalece a pequena propriedade, o povo come mais e vive melhor. A função da pequena propriedade é dar emprego aos milhões de desempregados. É dar segurança e alegria à maioria das famílias brasileiras, para produzirem o que comem, vendendo barato as sobras.

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