São Paulo, sábado, 14 de outubro de 1995
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Cai o Muro de Roma depois do de Berlim

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

A cada dia que passa cai mais um pedaço do muro de Roma. Nessa recente visita do papa aos Estados Unidos caiu um pedação.
Não dá para levar pedras e ``souvenirs" para casa como se fazia com os escombros do muro de Berlim. O de Berlim era um muro-menino, feito, e mal-feito, a partir de 1961, quando um número exagerado de gente de Berlim Oriental já tinha fugido para a parte ocidental da cidade, onde havia dinheiro capitalista e portanto trabalho, progresso.
O muro foi derrubado em novembro de 1989. Não durou mais, portanto, que uma boa cancela de roça, feita de madeira rija e com as dobradiças trocadas quando enferrujavam.
O muro de Roma vinha do tempo das catacumbas e durou até 1917, ano da Revolução Russa. Não havia como derrubá-lo diretamente e sim combatê-lo como concepção e se possível utilizá-lo, culpando a Igreja por erros contidos em sua construção.
Mas não vou cair neste buraco já tão explorado de que a Revolução Soviética não era contra a religião em si, pois esta, ainda que ópio do povo, tinha seu lado a favor dos pobres, dos ``danados da Terra", como dizia o hino da Internacional.
O fato a comentar aqui é que essa recente visita do papa aos Estados Unidos foi chocha a mais não poder. Sua única e pouco clara reivindicação mais objetiva, política, foi sugerir que os Estados Unidos deveriam resolver logo a questão do embargo a Cuba. E veja-se bem. Não por algum fidelismo papista.
Fidel, pelo menos uma vez na vida, trocou o uniforme de guerrilheiro por terno e gravata, mas nunca abriu mão de seus postulados revolucionários e ateus. O povo cubano é que poderia se aproximar do papismo, para ver se conseguia o fim do interminável bloqueio. Mas não o fez.
O papa Karol Wojtyla, especialista como poucos em política soviética e balcânica, deve ter tido uma esperança de que a queda do Muro de Berlim, e portanto o desabamento do império soviético, criasse uma aura religiosa cristã. Que dos próprios escombros do império se avistasse Deus, assim como nos dias claros se vê da ponte Rio-Niterói o Dedo de Deus.
Alguma espécie de renascimento religioso poderia vir do desabamento do império marxista-leninista. Não veio. Nem os russos, com seu antigo fervor religioso dostoievskiano, nem os cubanos, católicos-macumbeiros, tão parecidos com os baianos, demonstraram qualquer revigoramento religioso com a queda do Muro de Berlim. Não se voltaram para Deus.
Eu imaginei, em relação à Rússia, que Soljenitsin, com o triunfo de suas idéias, voltasse para Moscou de cajado na mão, anunciando nas ruas o fim do mundo. A verdade, porém, é que acaba de ser cancelado até um programa da televisão de Moscou chamado ``Encontros com Alexandre Soljenitsin".
Ninguém aguentava mais as catilinárias. Seu retorno estava assumindo ares de volta de um chato, que só fala nos pecados da era de Stalin. O povo quer ouvir falar nos milagres futuros da era do rublo.
Acho que tanto o desinteresse, ainda que polido, que o papa encontrou nos Estados Unidos como o descaso que Soljenitsin desperta na terra de onde se exilou durante tantos anos vêm do fato de que não se acredita mais, como acreditava Dostoievski, em crime e castigo, no sentido de pagar alguém na vida eterna pelo crime que cometeu nesta. Agora há nascimento e existência. Depois morte e pronto.
Como é que alguém, nos Estados Unidos de agora, podia aceitar o que tivesse a dizer o papa sobre o que poderia, num outro mundo, acontecer devido a atos cometidos neste?
Sobretudo quando o papa pensa o contrário do que pensam os próprios católicos americanos, que em sua maioria são a favor do casamento de padres (70%), do recasamento de divorciados (69%) e da ordenação religiosa das mulheres (69%)? Como convencer tanta gente do contrário daquilo que pensa?
Ou, por outras palavras, que castigo prometer aos que desobedecerem aos preceitos rígidos da Igreja quando 100% são contra o castigo, ou melhor, nem sequer acreditam no castigo?
Confesso que quando andei lendo, meses atrás, o livro do papa, ``Cruzando o Limiar da Esperança" (Francisco Alves Editora) nem me animei a comentá-lo, como pretendia. Achei o livro fraco, sem novidade. Só encontrei nele uma certa convicção, que pode ser até uma espécie de virtude, e que eu não saberia definir muito bem.
Karol Wojtyla parecia ter uma certa decepção com o Altíssimo. Parecia contar com mais saúde e vitalidade do que agora realmente tem. A verdade é que perdeu muito de seu vigor quando sofreu um atentado na praça de São Pedro em 1981.
Além disso, há algum tempo, removeu um tumor, benigno, mas inquietante, do intestino. O cardeal brasileiro dom Aloísio Lorscheider perdeu muito do seu prestígio no Vaticano quando divulgou que João Paulo 2 estava em perigo de vida, com câncer ósseo.
Jamais me ocorreu, lendo ``Cruzando o Limiar da Esperança", que seja fútil esse orgulho papal depositado numa saúde que era grande, esportiva. Antes me pareceu que seu interesse em manter as energias vitais tem tudo a ver com seu desejo de ainda viver o tempo suficiente para reforçar a marca um tanto autoritária e retrógrada da igreja da sua preferência.
Seja como for, com João Paulo ou com seu sucessor, acho fato claro e nítido que este milênio se encerrará com muito pouca gente na cristandade aceitando a concepção de vida eterna e juízo final. Esses muros que caem, o de Berlim como o de Roma, não descortinam qualquer monumento novo.
Ou talvez nos mostrem, à solta no pasto, a futura raça prevista por Eugene Ionesco, que era, como se sabe, não de homens e sim de rinocerontes.

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