São Paulo, domingo, 15 de outubro de 1995
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A máquina do tempo

ROBERTO CAMPOS

O governo voltou à carga, carteando charme e susto nos governadores e congressistas, tentando a renovação do Fundo Social de Emergência. Sem este, o déficit seria de R$ 4,6 bilhões. Enquanto isso, o aperto tem de continuar. Para o comum dos mortais, juros reais da ordem de 4% a mais de 10% ao mês e, para o governo, um custo de dinheiro superior a 2% ao mês. Com tudo o que isso acarreta: desemprego, falências, sufoco das atividades econômicas.
Naturalmente, as pessoas informadas e sensatas concordam que não há, no momento, outro remédio senão continuar por esse caminho. A estabilidade da moeda é uma prioridade absoluta que, felizmente, passou a ser uma causa muito popular. Um dos bons efeitos colaterais do Plano Real foi livrar-nos do coro dos asnos, que amedrontava políticos fáceis de assustar com o berreiro contra o "arrocho salarial", o FMI e mais quantas tolices lhes ocorressem.
O povo é frequentemente enganado por demagogos, mas, no fundo, começa a compreender que uma economia de mercado estável, embora não ofereça uma garantia de sombra e água fresca para todos, é a única via que leva de fato ao progresso econômico e ao bem-estar social duradouros.
O custo das nossas loucuras porno-ideológicas pode ser ilustrado, como tenho apontado, pelo contraste com dois países que tinham mais ou menos o nosso nível de 50 a 70: Taiwan e Coréia do Sul, que cresceram, nos 24 anos desde então, respectivamente, 2,2 e quase 2,5 vezes. Esses países só tinham desvantagens, comparados conosco: enormes despesas militares, inimigo permanentemente à vista, limitados recursos naturais.
A grande diferença residiu nas políticas seguidas. O preço que pagamos pelas nossas -nacionalisticamente fabricadas em casa, sem ajuda de ninguém- equivaleria, nessa ilustração, a oito a dez vezes nosso PIB de 1994!
A contribuição importante de Fernando Henrique foi a de haver tido a coragem de assumir a própria racionalidade. Entendeu os custos da inflação para o país, a inadiabilidade de uma ação imediata, aceitou o preço político dessa ação e foi eleito por maioria indisputável.
Obviamente, presidente novo não é mágica que resolve todos os problemas, e os há de todos os tamanhos e para todos os gostos. Não é nada fácil governar um país deste tamanho e com tantas diversidades, em que se justapõem uma sociedade industrial moderna, no Sudeste e Sul, outra ainda em parte tradicional, no Nordeste, uma rala sociedade de fronteira nos grandes espaços abertos da nossa geografia e uma bruta periferia marginalizada na nossa massa urbana, que já passa de 76% da população! A imagem de vários países, lado a lado, não é nova nem original, porque há perto de século e meio Disraeli a usou a respeito da Inglaterra. Mas ajuda a enxergar melhor as coisas.
Políticos individuais, membros do Congresso e mesmo governadores são obrigados, pela mecânica eleitoral, a concentrar suas atenções em aspectos parciais ou locais dos problemas do país. A responsabilidade pelo conjunto cabe ao Executivo. E deste se espera que execute com firmeza o projeto que propôs ao eleitorado.
No entanto, quem acompanhe o vaivém do governo em matéria de privatização, austeridade de gastos, reforma fiscal e previdenciária (para nos limitarmos a estes) sente a impressão de ter dado uma volta na máquina do tempo e entrado por alguma realidade virtual fantástica, que tem pouco a ver com o país Brasil e com o ano de 1995. O orçamento de investimentos previsto para as 85 empresas do governo federal (que incluem até artes gráficas e agências de turismo) chega a R$ 12.822.386.051,00. Repararam na precisão de um real? Isso é que é administração!
Desses R$ 12,8 bilhões, R$ 5,7 bilhões vão para comunicações (mais de R$ 2 bilhões para telefonia celular), R$ 1,9 bilhão para energia elétrica, R$ 3 bilhões para petróleo e R$ 660 milhões para portos. Mais de 88% dos investimentos públicos serão, portanto, em atividades que, em outros países, são típicas do setor privado. Um pouco mais da metade desse montante proviria de "recursos próprios" -no caso, mero truque contábil, porque o dinheiro acaba saindo de renúncias fiscais e outras mágicas.
Numa economia do tamanho da nossa, talvez pensem alguns, tais gastos, ainda que inconvenientes, não serão de porte a quebrar o caixa. Mas as coisas não estão bem colocadas assim. Afinal, o ministro Jatene está se debatendo por menos da metade dessas somas para as urgências da saúde que, essas sim, são responsabilidades típicas do governo.
Se a gente deve ao banco (e, portanto, não tem como não pagar) e resolve gastar um extra, qual é o custo efetivo desse dinheiro? Obviamente, é a taxa de juros que se está pagando pela dívida. Com o governo pagando mais de 2% ao mês (não ao ano, como o do Japão ou da Alemanha) -ou, em números redondos, uns 30% ao ano-, esse é exatamente o custo desses gastos com os dinossauros estatais.
Essa, leitor, é a principal razão por que, depois do choque do Plano Real, a primeira das providências deveria ter sido a reforma patrimonial -vender ativos que praticamente só dão prejuízo, a fim de reduzir ao máximo o saldo da dívida. Entretanto, há três anos se masturba a privatização da Light; o BNDES, após 19 meses do governo FHC, sequer escolheu as consultorias que avaliarão a Vale do Rio Doce; passados três meses da aprovação da flexibilização do monopólio de telecomunicações, nada foi feito para viabilizar investimentos privados para sanar a escandalosa ineficiência da telefonia estatal!
Um jovem político do PSDB, conhecido por dizer e fazer o que pensa, acaba de voltar dos Estados Unidos convencido da necessidade de um imposto único e de uma privatização radical. Não se trata de um ataque agudo de "neoliberalismo". Trata-se de ter olhos de ver e cabeça de pensar. Essas questões já não são mais "ideológicas", a não ser para paleopolíticos, primitivos intelectualmente subalimentados ou então fisiológico-corporativos.
As propostas de investimentos públicos são difíceis de compatibilizar com a racionalidade e o espírito público de Fernando Henrique. Compreende-se, talvez, que certos próceres do PSDB, pensando em passar a perna no aliado que realmente garantiu a vitória eleitoral, o PFL, queiram manter nas mãos as centenas de diretorias e outros cargos, para brincar de fisiologia...
De certo modo, Fernando Henrique continua a exibir aquela sorte implacável que o persegue por todos os cantos. Sua oposição tem vindo ou da fisiologia, do corporativismo e de resíduos ainda não higienizados de populismo ou então de uma esquerda desarvorada, que começa a descobrir que o emprego ideológico, tão farto nestas últimas décadas, está desaparecendo.
Mudança estrutural! O mundo cruel passou a exigir competência. E cada vez se torna mais verdadeiro o moto do presidente Reagan: "O governo não é a solução. É parte do problema."

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