São Paulo, domingo, 15 de outubro de 1995
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O elo quase perdido

CARLOS CALADO

Erramos: 16/10/95
Legenda publicada à pág. 5-8 ( Mais!) da edição de ontem identifica de maneira invertida os músicos Sergio Dias e Arnaldo Baptista. A ordem correta é, da esquerda para a direita, Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sergio Dias.
No ano 2000, ele terá 18 anos de novo. Afinal, embora já tivesse vivido 33 anos, Arnaldo Dias Baptista praticamente renasceu naquela noite em que seu corpo se estatelou no chão acimentado do estacionamento do Hospital do Servidor Público. Era o primeiro dia de 1982.
Só quatro dias depois as rádios paulistas começaram a noticiar a aparente tentativa de suicídio do ex-tecladista e compositor dos Mutantes. Arnaldo quebrou com as próprias mãos o vidro de uma janela do setor de psiquiatria, no terceiro andar do hospital, alcançou a pequena sacada e se atirou. A precária grade externa estava longe de servir como proteção. Antes de atingir o solo, o corpo bateu no parapeito do andar inferior, o que ajudou a amortecer um pouco o choque. Mesmo assim, a base do crânio foi fraturada -um tipo de lesão que normalmente resulta em morte.
Além do edema cerebral e um outro pulmonar, sete costelas fraturadas e várias lesões pelo corpo compunham um quadro clínico desesperador. Os médicos eram unânimes no diagnóstico: o estado de coma em que Arnaldo se encontrava era apenas uma questão de horas. Ou, no máximo, de poucos dias. Só um milagre o faria escapar com vida.
Rita Lee, ex-mulher de Arnaldo, chegou chorando ao hospital, no meio da tarde do dia 5, acompanhada pela parceira Lúcia Turnbull. As duas tentaram desviar do grupo de fãs, repórteres e curiosos parados na frente do portão principal, mas logo foram reconhecidas. Os mais inconvenientes chegaram até a pedir autógrafos. Lúcia teve que empurrá-los, para conseguir furar o cerco.
"Agora não! Agora não!", repetia, puxando a amiga pelo braço.
Rita estava tão abalada que mal conseguia andar em linha reta, muito menos falar. A ex-vocalista dos Mutantes soubera da tragédia minutos antes, na casa dos pais, ali perto, no bairro de Vila Mariana. Conversava descontraidamente com o marido Roberto de Carvalho e Lúcia, sobre a turnê européia que fariam naquele mês, quando o telefone tocou. Um amigo tinha escutado a notícia pelo rádio. Roberto ainda tentou argumentar, mas nem foi ouvido. Não queria que Rita se envolvesse com o caso, muito menos que fosse até o hospital. Irritado, ao vê-la sair correndo com Lúcia, derrubou todos os objetos da mesa.
Já nas dependências da Unidade de Terapia Intensiva, as duas chegaram a passar pelo corpo de Arnaldo, mas não o reconheceram. Ele estava com a cabeça bastante inchada, envolta por uma faixa. Quando refizeram o caminho e finalmente o acharam, Rita voltou a chorar, compulsivamente. Lúcia a deixou só, encostada no vidro que a separava de Arnaldo, murmurando frases ininteligíveis, como se pudesse falar com ele. (...)

Suzana Braga ficou perplexa ao receber a notícia por telefone, só no dia seguinte ao acidente. Vivia com Arnaldo há um ano e meio e já conhecia bem suas fases de depressão. Ao visitá-lo no hospital, na véspera, sentiu que ele estava triste, mas jamais a ponto de fazer uma loucura como aquela. Arnaldo chorou bastante naquela tarde, dizendo que tinha passado o pior dia de sua vida. Estava muito angustiado por ficar internado numa clínica durante a passagem do Ano Novo. Só não contou a ela que 31 de dezembro também era o dia do aniversário de Rita.
A medicação que Arnaldo recebeu ao ser internado deixara-o mais ansioso. Sentia dificuldade para falar, como se sua língua estivesse enrolada -outro efeito colateral dos remédios. Agressivo, chegou a esmurrar o vidro de uma porta da psiquiatria, até conseguir quebrá-lo. Porém, naquela sexta-feira, quando Suzana se preparava para sair, ao final do horário de visitas, Arnaldo já começara a dar sinais de melhora. Até se convidou para um joguinho de buraco com alguns enfermeiros e pacientes.
Arnaldo fora internado à revelia, por iniciativa de sua mãe, dona Clarisse, em 27 de dezembro. Andava muito tenso, fumando quatro maços de Hollywood por dia, além de tomar vários comprimidos do tranquilizante Lorax, receitados por seu médico. Mas quando começou a ficar mais agressivo, a mãe não viu outra alternativa. Com um sedativo diluído num copo de Coca-Cola, ela conseguiu fazê-lo dormir e então chamou a ambulância com os enfermeiros, para carregá-lo até o hospital.
Aquela era a quinta internação de Arnaldo, desde que começou a tomar LSD e algumas outras drogas com frequência, no início dos anos 70. Para piorar as coisas, ele não possuía um plano de saúde, muito menos dinheiro para pagar uma clínica especializada. A sorte da família era que o prestígio do pai, César Dias Baptista, que fora secretário particular do ex-governador Adhemar de Barros, ainda abria algumas portas, cinco anos após sua morte. Arnaldo foi internado no Hospital do Servidor Público do Estado de São Paulo, por ordem expressa do então governador Paulo Maluf.

Quando Sônia Abreu e Lucinha Barbosa receberam o telefonema de Suzana, desesperada, pedindo ajuda, as amigas lembraram imediatamente do que Arnaldo dissera na última vez que o viram. Bastante deprimido, ele estivera no apartamento das duas poucos dias antes de ser internado. Nem mesmo a proximidade do lançamento de seu novo LP ("Singing Alone"), que já estava gravado, ajudava a levantar seu astral. O papo de Arnaldo, naquela noite, foi bastante estranho. Entre alucinações e coisas incompreensíveis, disse que estava se sentindo "como Jimi Hendrix".(...)

Alguns dias depois, um pouco mais calmas, Sônia e Lucinha fizeram um balanço geral da situação e perceberam que Arnaldo estava praticamente abandonado no hospital. Para começar, Suzana não tinha condições de cuidar direito dele. Além de sua evidente fragilidade física e emocional, ela ainda tinha a responsabilidade de cuidar das duas crianças de seu casamento anterior.
Nem mesmo com a família Arnaldo podia contar muito. Dona Clarisse tinha acabado de contrair uma doença infecciosa e estava acamada, proibida pelo médico de sair de casa. Serginho se radicara nos Estados Unidos dois anos antes -sua tentativa mais consistente de dar uma guinada na carreira musical, desde que dissolveu a última formação dos Mutantes, em 1978. Cláudio César, o irmão mais velho, estava morando no Rio de Janeiro e tinha rompido relações com Arnaldo. Sônia e Lucinha não viram outra saída: para que ele tivesse alguma chance de sobreviver, precisavam assumir o controle de tudo.
Quando foi procurar o doutor Büller Souto, assistente da diretoria do hospital, Sônia entrou no assunto sem rodeios. Lembrou a ele que a janela da enfermaria na qual Arnaldo estava internado não tinha proteção -uma falha gravíssima de segurança. Apesar de uma grade ter sido instalada às pressas, algumas horas após o acidente, o fotógrafo de uma revista tinha conseguido fotografar a janela ainda quebrada e desprotegida. Assim, Sônia propôs um pacto muito útil para as duas partes: se os diretores colaborassem sem restrições na recuperação de Arnaldo, ela manteria as provas em segredo e evitaria que o hospital fosse processado por negligência.
O acordo foi feito na hora. Até mesmo porque o delegado do 36º Distrito Policial, da Vila Mariana, onde já havia sido aberto inquérito, não descartava a possível responsabilidade do hospital quanto à segurança do paciente. A partir daquele dia, Sônia, que já tinha se transformado em uma espécie de assessora de imprensa do caso, passou também a ser a responsável oficial por Arnaldo perante a direção do hospital. Conseguiu até mesmo uma licença para três curtos horários diários de visitas na UTI, onde Arnaldo continuava em estado de coma. (...)
Finalmente, em meados de janeiro, Arnaldo foi transferido da UTI para um quarto particular, também cedido de graça pelo hospital. Ainda estava em coma, mas seus sinais de reação já eram bem mais evidentes. Sônia e Lucinha sabiam que deixá-lo na enfermaria coletiva seria perigoso. Com um simples deslocamento acidental do aparelho respiratório, ele poderia morrer asfixiado, sem que ninguém percebesse.
Um "walkman", enviado por Rita, injetava música clássica e de meditação, durante todo o tempo, nos ouvidos de Arnaldo. Mais tarde, foi a vez dos discos dos Mutantes e muito Jimi Hendrix. Isso quando alguém não murmurava alguma canção que ele pudesse gostar, bem próximo de seus ouvidos. Uma tarde, por acaso, Sônia cantarolou a soturna "Dia 36", da fase inicial da banda. Os músculos do rosto de Arnaldo esboçaram um sorriso. O que poderia ser mais forte para ele do que a música?

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