São Paulo, domingo, 15 de outubro de 1995
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A textura de um ecossistema revolucionário

ANTONIO RISÉRIO

Bossa Nova, Cinema Novo, Tropicália e mais um ou outro lance de dados e/ou de búzios. Impossível pensar a nova cultura brasileira sem pensar na Bahia. Dessa região geocultural -justamente aquela onde teve início a aventura chamada Brasil- partiu, de forma concentrada e num período historicamente estreito, uma notável sério de intervenções revolucionárias na vida cultural do país. Deixando de lado João Gilberto e a onda bossanovista, em função do reduzido raio de alcance da abordagem que vamos realizar, basta pensar, por um momento, nos relâmpagos do Cinema Novo e da Tropicália, para medir a força e a natureza da maré. Em especial, para aqueles que despertaram entre as décadas de 1960-70 para o fascinante universo-em-expansão das idéias e das formas estético-intelectuais -para o "segundo sol da paidéia ou da cultura-, Caetano Veloso e Glauber Rocha se converteram em signos fundamentais.
Mas eles não floresceram nas alturas o vazio. São, antes, filhos especiais de um momento especial da vida baiana, no interior de uma conjuntura também especial da vida brasileira. Não quero dizer com isso que tenham sido inevitáveis, como a próxima lua cheia ou o deslocamento da limalha em direção ao ímã. A soma de uma dada contextura antropológica, de uma determinada textura social e de um certo texto político não é suficiente para produzir uma espécie "x" de sensibilidade e inteligência -e muito menos para levar alguma senhora excêntrica a parir um gênio. O que desejo enfatizar é que se criou naquele momento baiano, antes que a classe dirigente brasileira exercitasse seus músculos no espetáculo grotesco de mais um golpe militar, um "ecossistema" propício ao aparecimento, à formação e ao desenvolvimento de uma personalidade cultural criativa que se encarnou em artistas-pensadores como Caetano e Glauber. Que aquele momento foi especial, não se tem dúvida. Que ali frutificaram a invenção e o experimentalismo, muito menos. Que a agitação repercutiu viva e fundamente no conjunto brasileiro de cultura, menos ainda.
Entre as décadas de 1950-60, a Cidade da Bahia, ancorada em práticas culturais tradicionais, achou-se de repente sob um forte influxo de informações internacionais. Parte substancial delas vinha das vanguardas estético-intelectuais européias do período anterior à 2ª Guerra Mundial, especialmente nas áreas de música, teatro, artes plásticas, arquitetura, dança e cinema. Em termos extra-estéticos, despontava a formação de uma consciência socioantropológica baiana, a partir da implantação do Ceao (Centro de Estudos Afro-Orientais), na universidade. A produção universitária, os ateliês, o cineclubismo, os suplementos jornalísticos etc., configuravam uma teia elétrica de signos, injetando dados e idéias novas no espaço cultural da província. O que significa que a universidade, embora fosse um "locus" fundamental, nada tinha de farol solitário, "ilha da fantasia" ou "bunker" laboratorial de importância duvidosa. Muito menos era o purgatório da pasmaceira, da preguiça mental mais remansosa, como nos dias de hoje, quando segue alheia ao movimento da vida à sua volta. Pelo contrário, cidade e universidade não eram, naquele período, compartimentos estanques.
Penso que esta circunstância da história da cultura na Bahia, embora possa vir a ser apreendida de um golpe de vista rápido e sintético, não será devidamente mapeada se não levarmos em conta dois processos fundamentais -e simultâneos. De uma parte, aconteceu nos "fifties" baianos algo que hoje em dia julgaríamos impossível: o entrelaçamento da cultura boêmia e da cultura universitária. Não vigorava ali, naquele momento, o decreto estúpido da "incompatibilidade de gênios" entre a vagabundagem intelectual -o nomadismo criativo da inteligência notívaga- e a prática acadêmica. A inexistência de um "cordon sanitaire" entre o campus e a praça, a escola e a rua, a boate e o gabinete ou o ateliê e a praia, enriqueceu e vitalizou o circuito diário dos signos. Em resumo, nenhum "apartheid" simbólico atravancava a troca de experiências e a transfusão de discursos, para a fúria das sentinelas pré-mentais do reacionarismo, tão típicas do provincianismo da elite brancomestiça baiana.
De outra parte, ocorreu na Bahia, nesses mesmos "fifties", uma dialética entre a informação cosmopolita e a realidade antropológica local. Idéias vanguardistas, como as trazidas por Koellreutter e Lina Bardi, e teses excêntricas (no melhor sentido da expressão) como as de Agostinho da Silva, pensador que não deixava de estar ligado ao modernismo lusitano, desembarcaram então naquelas praias azuis, para circular entre as sombras do velho massapê escravista e o sol que faiscava na areia clara do litoral. Como já disse, boa parte desse arsenal vinha do repertório configurado pelas experiências e reflexões da vanguarda estético-intelectual européia das primeiras décadas do século 20. Era a informação internacional de "primeiro grau", informação nova, numa circunstância ecoantropológica concreta, específica, nitidamente distinta, mesmo no âmbito do universo brasileiro de cultura.

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