São Paulo, domingo, 15 de outubro de 1995
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A abissal normalidade do cotidiano

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Pais e adultos em geral são incompetentes para entender o que vai pela cabeça das crianças; estas, por sua vez, são incapazes de detectar o que se esconde sob os gestos e as frases dos mais velhos. Na zona cinzenta que reúne essas duas conhecidas limitações, reside o objeto de "Quarto de Menina", estréia literária da psicanalista carioca Livia Garcia-Roza.
Luciana, oito anos, filha única de pais separados, é inteligente, sapeca, sem papas na língua e mora com o pai, intelectual pacato, caladão, professor de filosofia. É ela a narradora do livro. Ao longo de 180 páginas, relata o seu cotidiano, que se limita, aqui, ao próprio quarto, à biblioteca do pai, à sala e à casa da mãe.
A linguagem usada por Livia é direta, sem sofisticação. Seu intento não é reconstituir uma infância a posteriori, mas sim narrar de forma crua a sua vivência, como num tempo presente, em primeira pessoa, no "calor das horas".
Apesar disso, não se trata de uma obra para crianças. A construção híbrida da narrativa descarta episódios mais banais ou preocupações que seriam em tese mais comuns às crianças, dando destaque para os diálogos, seja entre Luciana e os pais, seja entre a garota e suas bonecas (até um grilo entra na história).
No primeiro caso, Luciana frequentemente não entende certas insinuações dos pais, enquanto estes ficam perplexos diante de reações ou perguntas da filha. Há um curto-circuito atrás do outro. Já nas "conversas" com seus amigos de quarto, a narradora expõe seu estranhamento, desabafa, chora, faz planos e, ao mesmo tempo, revela indireta e inconscientemente a dificuldade de captar o significado dos eventos que ela mesma narra, significado que nós, leitores presumivelmente maduros, enxergamos logo de cara.
Nessa capacidade de explicitar ao mesmo tempo uma história e a não-compreensão dessa mesma história pelo seu próprio narrador, aí está um dos pontos mais interessantes de "Quarto de Menina".
A autora é tão radical nesse aspecto, que, tal como os pais da narradora, chegamos em certos momentos a temer pela saúde mental de Luciana, enquanto a menina encara tudo e qualquer coisa que lhe diga respeito diretamente com a maior naturalidade. A tensão se agudiza, por exemplo, quando, certa vez, ela se vê obrigada a falar ao mesmo tempo com o pai e com suas bonecas.
Forma-se aos poucos um clima de semiterror nesse poço de incompreensões: delírios, fantasias, pesadelos e planos maldosos se forjam na cabeça da narradora, em particular depois que o pai se casa pela segunda vez e o apartamento ganha uma nova "mãe".
À certa altura, Luciana afirma: "De um momento para o outro as pessoas estavam mudando completamente. Saí do quarto querendo alguém sempre igual, sem ficar diferente de uma hora para outra". Uma ingênua impertinência passa a tomar conta de suas ações.
O livro tem o mérito óbvio de chamar a atenção do leitor adulto para as delicadezas, as sinuosidades do universo infantil. É como um apelo a que se tome mais cuidado, por exemplo, na interpretação de episódios à primeira vista assustadores. Fala-se de doença, de morte e de gravidez; a sensibilidade da menina narradora ergue diante dos nossos olhos inúmeros pequenos abismos cotidianos. E, no entanto -o que talvez seja o mais preocupante-, fica claro que estamos diante de pessoas absolutamente normais! É que a escritora Livia não esconde, na obra, a psicanalista Garcia-Roza.

A OBRA
Quarto de Menina, Livia Garcia-Rosa. 184 págs. Editora Relume-Dumará (r. Barata Ribeiro, 17, sala 202, Rio de Janeiro, CEP 22011-000, tel. 021/542-0248). R$ 21,00

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