São Paulo, domingo, 15 de outubro de 1995
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Antropofagia feminista

ADRIANO SCHWARTZ
DA REDAÇÃO

O artigo ``Pela Liberdade das Mulheres" (publicado no Mais!, no dia 10 de setembro), da professora Maria Lúcia Pallares Burke, sobre a escritora Nísia Floresta, desagradou aos membros do Conselho Estadual de Cultura do Rio Grande do Norte, que julgaram o texto, de acordo com Veríssimo de Melo, presidente do conselho, ofensivo ``à memória da pioneira do feminismo no Brasil".
No texto, Pallares Burke apresentava a tese que a escritora rio-grandense-do-norte plagiara uma obra do século 17, do francês François Poulain de La Barre, e outra do século 18, de Sophia (pseudônimo; o nome do autor ou autora é desconhecido) para escrever a sua ``tradução livre" do ``Vindication of the Rights of Woman", da feminista inglesa Mary Wollstonecraft.
Para Pallares Burke, Nísia, que publicou sua tradução em 1832, no Recife, assumia uma importância diferente, maior, da que a história lhe confere. Em vez da tradução -que, para ela, até hoje não ocorreu- de uma obra importante, ``Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens" inaugurava a ``batalha pelos direitos da mulher" no Brasil.
Em sua ``travessura literária", Nísia optara por usar o título de uma obra famosa para divulgar as idéias mais revolucionárias de Poulain e Sophia.
Para Constância Lima Duarte, professora de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, não são as descobertas de Pallares Burke que devem ser contestadas, mas o tratamento dado a elas, principalmente os usos da palavra ``plágio" e do termo ``travessura literária".
Constância Duarte é autora de um estudo sobre a escritora (``Nísia Floresta - Vida e Obra"/Editora da Ufrn) e organizadora de uma reedição de ``Direitos das..." (Cortez Editora). ``A idéia de `plágio' implica", segundo a professora, ``uma mera imitação, cópia, e pressupõe um escritor `menor', incapaz de idéias próprias; `travessura literária' sugere explicitamente um gesto infantil, uma brincadeira impensada".
Para ela, Nísia escreveu outro livro. ``Ela definitivamente não realizava uma tradução de Wollstonecraft e muito menos plagiava a inglesa ou qualquer outro autor. O que ela faz é se apropriar e adaptar à realidade brasileira as muitas idéias a respeito do tema que circulavam na época, tratando a questão feminina a partir de uma perspectiva nacional, o que altera fundamentalmente o problema."
Alternando o ângulo da interpretação, Constância Duarte não vê importância no fato de Nísia ter citado o romano Catão em vez do francês Rousseau (como comprovou Pallares Burke).
Para ela, o fulcro da questão está no fato de Nísia -uma jovem de 22 anos, vivendo no lugar e na época em que vivia- conhecê-lo e identificá-lo ``como um dos ideólogos do pensamento masculino contrário à mulher".
Além disso, acrescenta, outros autores, como, por exemplo, a francesa Olympe de Gouges -decapitada na Revolução Francesa por escrever um texto a favor das mulheres- também estão presentes no texto da brasileira.
À noção de plágio, a professora prefere os conceitos mais atuais da teoria literária de ``apropriação" e ``desconstrução". A atitude de Nísia ``constitui-se numa apropriação e numa desconstrução de escritos europeus, realizadas da perspectiva da periferia, visando à construção de outro texto".
Segundo Duarte, Nísia é ``uma moderna bem antes do modernismo", já que antecipa um dos principais tópicos do pensamento de Oswald de Andrade, um dos fundadores do modernismo brasileiro.
``Muito antes de Oswald teorizar a antropofagia, Nísia já devorava e deglutia o discurso da metrópole e entregava ao seu público um outro produto."
Nísia Floresta Brasileira Augusta -pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto- nasceu no dia 12 de outubro de 1810, no Rio Grande do Norte, e morreu em 24 de abril de 1885, em Rouen, na França. Escreveu livros em português, francês e italiano e residiu cerca de 28 anos de sua vida na Europa.

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