São Paulo, segunda-feira, 16 de outubro de 1995 |
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`Steward' revela a Irlanda
NELSON DE SÁ
``The Steward of Christendom", escrita por Sebastian Barry, protagonizada por Donal McCann, ambos irlandeses, é o que há de melhor, de mais emocionante e envolvente em cartaz em Londres. A unanimidade alcançada pela peça nas críticas locais é entendida em poucos minutos de apresentação. No papel de Thomas Dunne, um irlandês católico -um chefe de polícia- leal à coroa inglesa e sobretudo à ordem, nos anos mais violentos da revolução, McCann é a humanidade em cena, tão avesso quanto possível à política. O personagem surge já próximo de morrer para relembrar menos a face da guerra civil e religiosa e mais a imagem do próprio confronto, só que no espelho: a tragédia da família, de seus filhos e mulher, enfim, a sua tragédia, paralela à da Irlanda. ``Steward" é o resultado de um esforço do autor para reconstruir o passado da sua própria família. É parte de uma série de peças que buscam as pessoas perdidas ou escondidas de uma família irlandesa, escreve Sebastian Barry no prefácio da edição da peça. ``A peça sobre o meu tataravô Dunne era a mais preocupante, porque ele foi o último chefe católico da Polícia Metropolitana antes de 1922. No folclore dos sindicatos de Dublin, ele não tem uma posição invejada." Mas Sebastian Barry buscou o outro lado de Thomas Dunne -e foi encontrar o velho policial numa casa de saúde mental, onde ele foi parar depois de um acesso de violência em que ameaçou uma das filhas com uma espada. É este homem velho, às voltas com a memória da mulher morta em trabalho de parto, com a memória das suas três filhas (como o rei Lear, uma clara referência da peça) e do filho morto ainda adolescente na Primeira Guerra Mundial, que Donal McCann enche os olhos do público. O que o ator mostra em cena guarda tanta ligação com o espírito nacional quanto o mais exaltado dos rebeldes -até por apresentar pontes entre as duas tragédias, como na morte do filho, enviado pelo próprio pai para a guerra, ou na confusão entre a imagem da mãe de Dunne e a da rainha. Em grande parte um delírio de tristeza, a interpretação é um esforço desesperado de voltar no tempo e como que fazer as pazes com a própria vida. Os outros personagens vão surgindo como fantasmas, com quem Dunne conversa e troca carinhos e chora. É assim com a filha mais nova, linda, que deixou a Irlanda pelos Estados Unidos e não voltou mais. É assim com outra filha, que esconde os seus próprios filhos do avô, com medo de violência -para grande sofrimento do solitário e envelhecido Thomas Dunne. O que dirige a tragédia é menos o remorso e mais a saudade, a falta de um mundo que desapareceu, a morte em vida, espelhada no final pelo abraço de pai e filho, adolescente, quase criança. Os aplausos são emocionados, chamando o elenco quatro vezes de volta ao palco, em plena segunda-feira. Estranhamente, uma tal peça de saudade e memória está no teatro de público e de artistas mais jovem, o Royal Court. Um teatro que, com ``The Steward of Christendom", enfrenta as questões do nacionalismo e do confronto religioso sem excessos, como um espelho com imagem invertida, que permite ver além do óbvio. Próximo Texto: Coluna Joyce Pascowitch Índice |
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